Era um mundo desgraçado. Contudo, nada muito acima da média dos últimos cinco mil anos. De corpo presente, tinham bem umas trinta-e-muitas pessoas na reunião. Os moradores do subúrbio andavam em polvorosa por conta dos sérios distúrbios escatológicos das últimas semanas que envolviam Mofo, o mendigo. Ele — ninguém sabia o seu nome e, provavelmente, nem ele mesmo se lembrava mais — já tinha ido longe demais com aquela história de atacar as pessoas com merda.
Era pastoso e incerto que eu tinha prometido à formosa esposa do meu editor na Revista Culpa — uma megera de estupendas e perigosas curvas — que nunca mais utilizaria palavrões e trocadilhos infames na criação dos meus temerários artigos literários, contudo, a missão de descrever a vida como ela nunca deveria ter sido, impelia-me a quebrar a promessa, ainda que, pela rebeldia, eu pagasse com o próprio estômago: não seria mais convidado para festas, orgias, conchavos, banquetes e regabofes na bela mansão financiada daquele casal de patifes. Eu era burro, mas, isso todo mundo já sabia.
O modus operandi de Mofo, o mendigo, não variava: uma vez aviltado por alguém durante os seus delírios diuturnos, ele se afastava por alguns instantes, procurava algum canto razoavelmente sossegado para desovar larvas entremeadas com sobras de comida mal digerida, que bem podia ser um lote baldio, um arbusto na praça, o busto de bronze do maldito procurador da república ou uma manilha de cimento esquecida pela inoperante agência de saneamento do condado; então, ele arriava a calça puída, acocorava-se como um matuto, fazia o serviço, catava os dejetos com as próprias mãos que a terra, nem fodendo, haveria de comer — desculpe pela reincidência verborrágica, Mrs. Sara Jane —, e os atirava contra os algozes de última hora.
Os imundos atentados já tinham acometido deus-e-todo-mundo, exceto, a endemoninhada legião miliciana. Mofo, o mendigo, era pobre, era doido, era mendigo, mas, não era besta para sair tacando excrementos nos paramilitares, muitos deles, trogloditas desumanos incentivados pelo déspota Mojo Filter a tocar o terror contra vagabundos, cientistas, comunistas e contorcionistas veados que lambiam o próprio rabo, valendo-se dos arsenais de armas de grosso calibre contrabandeadas dentro de intestinos e de ataúdes de grossos calibres. Naqueles tristes dias, já se atirava em caboco só para rir do tombo.
Depois da indispensável assepsia com gel de água benta a 70%, a malta satânica se reuniu no templo religioso que dominava o tráfico de fé naquela região da cidade, sob a anuência do apóstolo mor, que já tinha sido alertado pela matilha de pastores alemães que Mofo, o mendigo, já estava fazendo mal aos negócios, tendo em vista que os atentados com titica já tinham sucedido até mesmo dentro daquele estabelecimento. Homens, mulheres e neonazistas-trans insistiam que era indispensável dar um jeito em Mofo, o mendigo. Teriam que capturar o besta-fera e jogá-lo dentro da camioneta dos dogues milicianos, a fim de que os brutos aplicassem nele uma pisa homérica, um corretivo exemplar, ao estilo do Velho Testamento, algo pior do que permanecer vivo nesse mundão velho — e desgraçado — sem porteira.
“Porqueira é o que esse demente anda a fazer a gente” — queixou-se uma poetisa lactante de sovacos cabeludos e de portentosas tetas, que aproveitou o ensejo, não apenas para esguichar leite salobre na cara macabra dos cabras, como questionar ao preposto de Jesus Cristo na Terra, se não feria os princípios dogmáticos aplicar um corretivo daquela magnitude no vândalo do cocô, por mais odiado que o sujeito fosse. O pastor alemão aliviou a barra do rebanho, eximindo-os de culpabilidade, assegurando que dar um susto naquela ovelha desgarrada seria um mal necessário, com fins humanitários, para o qual — já estava tudo acertado — Deus faria vista grossa.
Apesar do adiantado da hora e da idade, uma velhota pé-na-cova pediu a palavra e ponderou que não seria de bom alvitre sumir com Mofo, o mendigo, sem que, antes, deliberassem que fim teria Berne, o cachorro, um vira-latas que não arredava os pés, ou melhor, que não arredava as patas do dono. “Cachorro de mau gosto, esse. Quem vai cuidar do animal quando Mofo, o mendigo, se for? Eu é que não vou…”, alertou, com uma empáfia incomum para quem estava prestes a bater-com-as-quatro e a deixar o planeta menos selvagem.
O bom de se ter tanta gente reunida em prol de soluções práticas era poder contar com ideias mirabolantes. Tinha sempre alguém que tirava um coelho da cartola. O homem do caldo-de-cana sugeriu que acionassem o centro de zoonoses da prefeitura, requisitando o adjutório da gangue da carrocinha, a fim de capturar o canídeo. Na posterior ausência de voluntários interessados em adotar o pulguento, o cãozinho seria transformado numa bola de sabão que reverteria para a própria comunidade do bairro. Nada mais social portanto. Uma rara jovem virgem choramingou, apiedada com o destino capital do totó. “Não chore, mocinha, não estrague o seu blush. A vida é mesmo assim: doce, gostosa, mas, dura como rapadura”, emendou um escritor medíocre que se julgava injustiçado pelo júri do Jabuti. Impaciente, o pastor alemão vociferou uma prece curta e avisou a todos que precisavam cair fora, pois, o comércio fechava às 11.
Na saída da igreja, a surpresa final. Mofo, o mendigo, acometido de insaciável sede de vingança e de espasmódicas cólicas intestinais decorrentes da congestão digestiva provocada por restos de comida deteriorada gentilmente doados por um transeunte, subiu no alto da comunheira, arriou as calças como de praxe — os bagos lisos, dependurados, contentes — fez pontaria e atacou com pesada artilharia o lombo hipócrita dos mancomunados cidadãos de bem, os seus piores inimigos. Do outro lado da rua, Berne, o cachorro, lhe sorriu latindo. Ah, lembrei-me: Mofo, o mendigo, chamava-se Roberto.