O marxismo está outra vez na moda. E, segundo essa doutrina, toda a estrutura capitalista é justificada pela ideologia, e a ideologia nunca é a verdade. Quem a (re) produz é a família, a religião, o sistema educacional, os sistemas político e judiciário, os meios de comunicação; enfim, todo o conjunto de instituições públicas e privadas (“superestrutura cultural”) que representa ideias e constitui um discurso, teoricamente de legitimação deste modelo econômico, baseado na exploração da mais valia. Em português claro: uma minoria (minoria mesmo!) engana a maioria para dela extrair lucro. Seríamos enganados o tempo todo por padres, professores, juízes, políticos e empresários que representam o sistema “opressor”. A “verdade” nada mais seria do que a “narrativa” dos fatos segundo a conveniência dessas pessoas e grupos. A Rede Globo, a ONU, o Supremo Tribunal Federal, a OMS — todos eles, “farinha do mesmo saco”, fariam parte de uma grande “conspiração” para nos manipular, a fim de manter o sistema — que na prática seria, então, uma “ditadura” —, preservado.
Mas espere: isso se parece demais com o bolsonarismo! Pois é: ideologias extremistas (o bolsonarismo é uma delas) se parecem mais do que gostariam de admitir. Assim como os comunistas, os bolsonaristas dizem que querem destruir o sistema. As semelhanças teóricas entre Psol e Aliança Brasil terminam aqui, mesmo que na prática as duas faces da moeda acabem se identificando com a opressão (umas com Cuba e Venezuela, de um lado; outras com os Estados Unidos da era Trump e similares, de outro). A verdade — por falar em verdade! — é que quem está no poder sempre vai querer controlar a opinião pública, não importa se à esquerda ou à direita do espectro político. Neste sentido tudo é “narrativa”. É até curioso como as posições se invertem conforme as circunstâncias: quem “hoje” mais defende as instituições liberais-democráticas, no Brasil, são os chamados “comunistas”, como o Psol e o PSDB. Quem hoje defende a ditadura política (segundo eles para barrar o sistema) são os conservadores que se beneficiam deste mesmo sistema (basta ver o Centrão, grupo do presidente autoproclamado mais “antissistema” dos últimos 522 anos).
Tanto para os oprimidos sob o comunismo quanto para esses pretensos oprimidos sob o capitalismo, a Liberdade de Expressão é muito importante. Quem já leu algum romance de Milan Kundera percebe como a liberdade de consciência e de expressão constitui uma necessidade crônica de seus personagens, oprimidos pelo regime de Moscou. Quem acompanha as redes sociais bolsonaristas percebe como essa mesma liberdade virou um mantra para os conservadores brasileiros, oprimidos principalmente por Alexandre de Moraes e pela Rede Globo, ou seja: pelo Poder Judiciário e pelo Poder Midiático. Na prática estão dizendo sem querer — e isso o bolsonarista raiz não lê nas entrelinhas — que o sistema capitalista é tão podre quanto diz o marxismo. Ou o STF e a Rede Globo não vocalizam o sistema econômico em vigor no Brasil? Porém, o conservador reacionário (atenção ao adjetivo!) quer destruir apenas “certo” pensamento por trás da exploração do homem pelo homem, mas não a exploração em si. Pois o conservador, no modelo social judaico-cristão, é parte deste sistema de exploração a ser… conservado (seria uma contradição em termos querer destrui-lo, de fato).
O conservador reacionário vende a ideia de que é liberal somente em matéria de opinião / expressão. Em todo o resto, principalmente em matéria de costumes, ele é apenas conservador, inclusive na política. No Brasil atual ele aprova o Centrão (DNA do sistema) e defende a tortura (método com que mataram seu “adorado” Jesus Cristo). Acha que os militares representam a redenção de todos os males; que os militares representam a moral e os bons costumes; que os militares devem chancelar as eleições — e que ninguém precisa fiscalizar os militares, embora os militares devam fiscalizar os outros. O país ideal do conservador reacionário é uma ditadura de coturnos. Mas ditadura para quê? Para derrotar o sistema? Não, para derrotar qualquer oposição a eles: o Supremo, a Rede Globo, o Globalismo e todas as demais expressões do “comunismo”… Hem? Pois é: a Liberdade de Expressão é uma coisa, a mentira é outra.
O conservadorismo reacionário dominante quer a Liberdade de Expressão não para propagar ideias legítimas (o agro é legítimo, a família tradicional é legitima, o Evangelho é legítimo), mas para mentir: nem toda a oposição política, nem o STF, nem a Rede Globo, nem a OMS são ou foram algum dia comunistas, como afirmam veementemente. Os representantes da extrema-direita brasileira e do establishment político (principalmente os generais) sabem que nada disso é verdade, mas manipulam seus seguidores para que acreditem que é. As bolhas digitais são massas de manobra para atingir os fins daquela minoria bem pequena, sejam esses fins quais forem. E há fortes indícios de que não são nada republicanos, como se vê na atual gestão do MEC. Tudo continua como antes no quartel de Abrantes.
Na sociedade contemporânea a Liberdade de Expressão está sendo usada para propagar mentiras. E quem é cego não consegue discernir entre uma coisa e outra: acompanha a manada sem questionar. O risco da inverdade é o de estimular a animosidade de milhões de bárbaros inermes, mas propensos a ir às últimas consequências como gado tangido. Não é brincadeira nem inofensivo falar o que se quer, nas redes sociais. Pessoas pegam em armas por isso e ameaçam a vida de outras. Somos todos a favor da Liberdade de Expressão — “Eu não quero vacinar porque minha religião proíbe”, tudo bem —, mas devíamos ser todos contra a mentira — “Esta vacina tem um chip e você será dominado pelos chineses”. Opa! São conteúdos muito diferentes sobre o mesmo assunto, com consequências muito distintas. O primeiro não viola o direito individual, de escolha; o segundo atinge a coletividade de forma direta, irresponsável e mortal. A primeira opinião não é crime, a segunda é, de forma flagrante e cristalina. A primeira não é manipulação de terceiros, como a segunda é, a olhos vistos. E manipulação, por definição, é o inverso da Liberdade. Justamente!
Há controvérsias até a respeito de verdades científicas. Até mesmo a ciência é influenciada por ideias e está sujeita à ideologização política. Mas há critérios. A médica infectologista Luana Araújo advertiu à CPI da Covid algo da maior importância: há em torno das vacinas contra a covid uma coisa que se chama Verdade Relativa de Ponta, em torno da qual estariam congregados a maioria dos cientistas que defendem os imunizantes aprovados pelas agências reguladoras nacionais. O consenso é pela ausência de riscos significativos à saúde pública e à vida. Se foi sempre assim e ninguém nunca fez alarde, por que ouvir agora pesquisas menos embasadas, menos consistentes, e correr o risco de morrer? Toda uma indústria da mentira, escamoteada de opinião, foi criada para desvirtuar a verdade, neste caso em benefício de um ignorante alçado ao vértice do sistema. Por princípio, até a ciência precisa ser questionada: é uma questão de segurança. Mas ela não pode, entre todas as verdades, ser usada para fins políticos, pois não é opinião. Não pode nunca estar sujeita ao escrutínio público, em assembleias do populacho. Não pode ser deliberada por todo o povo na ágora do WhatsApp. O negacionismo reinante acha que pode. Mas o negacionismo é um dos males — para não dizer a pior desgraça — da sociedade contemporânea. Negacionistas utilizam a Liberdade de Expressão para propagar mentiras (mortais como no caso da pandemia), nas quais acreditam principalmente… os conservadores. Olha que ironia!
É assim que sistemas opressores podem submeter milhões e até bilhões de seres humanos, que, estando livres para ter acesso às redes sociais e falar o que pensam, estão, não obstante, presos por aqueles que nos dão armas mas escravizam nossas mentes.
Então, a questão é: Elon Musk, o novo dono do Twitter, defenderá a Liberdade de Expressão ou a mentira? Como se argumentou, são coisas diferentes, com resultados drasticamente opostos.