Muito já se disse e se escreveu a respeito da famigerada “função da arte”. Há quem diga que a função da arte é educar, preparar o homem para o futuro, instigar no homem uma consciência de fazer parte de um todo, de um organismo maior que seu próprio corpo, que sua própria família, seu próprio círculo de amigos, sua cidade, seu país, quem sabe esperando que deixe de caber no próprio planeta. Por outro lado, muitos defendem que a função única da arte é precisamente essa, ser arte. A arte pela arte é arte ao quadrado e, em muitos casos, é muito mais producente quanto a fazer girar a roda da evolução. A vida é um mar proceloso que se atravessa a bordo de uma nau sem casco e é a arte quem pincela com um pouco de beleza essa travessia. A Bula elaborou uma lista com quatro filmes cuja delicadeza do roteiro fazem a gente sonhar — e pensar, e sonhar outra vez.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.
“My Happy Family”, coprodução da Geórgia com a Alemanha, instala o espectador na sala de uma típica família tradicional do extremo Leste Europeu, patriarcal e conservadora. Entre eles vive Manana, cinquentona, sem voz, amargurada, oprimida pelo pai, marido e filhos. Ela tenta não enlouquecer em meio a tanta gente dividindo o mesmo espaço, e vai administrando os conflitos que irremediavelmente surgem. Até que resolve dar uma guinada radical, antes que seja tarde demais, e sai de casa, deixando para trás tudo o que tem e as referências sobre o que é a vida em sociedade. A seu favor, a imensa vontade de ser, enfim, feliz, com todos os percalços que essa decisão possa implicar.
Uma viúva solitária e insone decide convidar o vizinho, também viúvo e também insone, para dormir em sua casa. A proposta inusitada, que almeja dar aos dois a chance de uma noite de repouso, deixa o professor aposentado atônito a princípio, mas à medida que eles seguem com a empreitada, esses dois veteranos das dores da alma percebem que começa a florescer uma bela amizade. “Nossas Noites” certamente foi feito sob medida para Robert Redford e Jane Fonda, dois dos maiores expoentes da era de ouro do cinema. Os dois estrelaram dezenas de clássicos, foram premiados com alguns Oscars, contracenaram três vezes e arrebataram público e crítica, trabalhando ora separados, ora juntos, mas sempre apresentando um desempenho admirável.
Ao longo da Segunda Guerra Mundial a Turquia vai se esfacelando devido à fome e à mais absoluta falta de perspectiva de algum alento. Dois amigos, ambos poetas e tuberculosos há anos, se apaixonam por Suzan. Para resolver quem fica com ela, eles decidem que cada um escreverá um poema de amor e o entregará à garota, a quem cabe dar o veredicto sobre qual será o escolhido. O preterido deve admitir a derrota e ir embora. O longa do diretor turco Yilmaz Erdogan é um filme sobre amor, amizade, esperança, solidão, todos esses sentimentos à flor da pele durante um conflito armado. E ainda sobra muito espaço — afinal, são 2h18 — para uma crítica aos abismos sociais, intensificados num cenário de desordem, incertezas e medo.