Em tempos fora dos eixos, vem a calhar a nova edição do romance “Em Liberdade” (1981), de Silviano Santiago. Quando foi lançado, o livro causou um assombro. O autor já era um dos mais renomados críticos literários do Brasil e um professor universitário com trânsito internacional. E o que era aquela obra? Nada mais, nada menos, do que um diário fictício como se o narrador fosse o escritor Graciliano Ramos, contando o que se passou num período curto de sua vida após sair da prisão.
Certa graça havia em ver leitores perplexos e pensando que os escritos poderiam ser mesmo de Graciliano. A ficção de Silviano Santiago começa nas primeiras páginas com a advertência, intitulada “Sobre esta edição”: “Os originais de ‘Em Liberdade’ encontram-se batidos à máquina e com poucas correções. Aqui e ali, Graciliano teve necessidade de acrescentar frases ou mesmo parágrafos”. O pacto ficcional com o leitor prossegue, com a intenção de fixar o “como se fosse uma verdade” que todo romance carrega: “Tudo indica ser esta uma versão já bastante elaborada do texto, possivelmente dada como terminada na Pensão da Dona Elvira, em 1937, mas revista e datilografada em 1946, época em que o manuscrito é oferecido a um amigo de longa data. Época também em que, segundo o testemunho corrente, começa a redigir os primeiros capítulos das suas reminiscências de prisão, que levariam o título de ‘Cadeia’, posteriormente abandonando”.
O projeto do livro “Cadeia” acabou se materializando nos dois volumes de “Memórias do Cárcere”, no qual Graciliano contou sua experiência de prisão pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. O lance criativo de Santiago é o resgate de um personagem e um contexto do passado para capturar o presente do começo dos anos 1980: o regime militar iniciado em 1964. Trata-se da visão brasileira do eterno retorno, o desejo recorrente da sociedade pelo pai autoritário e a tara da educação pelo chicote.
O Graciliano recriado por Silviano Santiago é o intelectual que paga o preço de sua coerência com a prisão pelo poder estatal — sempre a mesma coisa no Brasil. Não tem um centavo no bolso e está no Rio de Janeiro dos meses de janeiro e fevereiro de 1937. A família (a mulher e os quatro filhos) ficou no Nordeste, longe da capital do país. O suporte vem de José Lins do Rego, escritor consagrado que hospeda o amigo sua casa, até ele encontrar um rumo na vida.
Repetição histórica
As primeiras páginas de “Em Liberdade” são primorosas, ao expor o sentimento de um indivíduo aniquilado pela perseguição e condenação política. O corpo dói tanto quanto o pensamento das ideais. O terror ronda a cidade e chega ao indivíduo. Santiago escreve o romance justamente na época em que estão na moda as memórias dos guerrilheiros do final dos anos 1960, como “O Que é Isso, Companheiro” (1979), de Fernando Gabeira, e “Os Carbonários” (1980), de Alfredo Sirkis.
Mas, ao invés das aventuras dos jovens, brota no livro de Silviano “a fúria do corpo” do narrador — título do romance de João Gilberto Noll, também lançado em 1981. “Não sinto meu corpo. Não quero senti-lo por enquanto. Só me permito a mim existir, hoje, enquanto consistência das palavras. Estas combinam-se em certas frases que expressam pensamentos meus oriundos da memória afetiva e criados ao acaso. Combinam-se em outras frases que são respostas a perguntas que me fazem desde que saí ontem da cadeia”, diz o narrador, nas primeiras páginas, datadas de 14 janeiro de 1937.
A operação literária de Santiago é demarcação de um novo território para o escritor e sua relação com a sociedade. Não havia mais o romantismo revolucionário da esquerda, nem a apologia do mercado feita pelos novos conservadores. “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se comercializa”, escreve o Graciliano de “Em Liberdade”. Se existe algum horizonte visível, ele está num “entre-lugar”, entre homens e mulheres, entre a realidade histórica e a ficção. Um lugar que não se fixa.
Antes de Arnaldo Antunes, a escrita de Silviano Santiago imaginou um corpo que “ainda pulsa” nas piores situações da vida, seja nos anos 1930, seja na década perdida de 1980. O austero Graciliano manifesto o instinto sexual, um dos indicadores da nova liberdade: “Andando de membro duro pela praia de Botafogo, sentia-me finalmente em liberdade. Entregava-me à imagem do corpo gracioso da moça à minha frente. Recebia de cheio no rosto o sol e a brisa marinha. Reparava o movimento pacífico das ondas na enseada (tão diferente da máquina violenta das águas do mar de Ipanema). Submetia-me à plenitude do Pão de Açúcar dominando a paisagem. Lamentava o fato de estar recoberto de pano de alto a baixo. Suava a cântaros”.
Novos sujeitos
No romance seguinte, “Stella Manhattan” (1985), Silviano Santiago explora de vez as possibilidades do corpo como “máquinas desejantes”, para usar a expressão famosa de Giles Deleuze e Felix Guattari, e os horrores de um tempo de repressão. O autor não cai na tentação das banalidades do “mínimo eu” da época. Sua escrita é uma reflexão para o mundo que parece fora dos eixos, sem alternativa política. Vale lembrar que o Brasil de 1981 estava no auge da transição rumo à volta da democracia.
Antifascista convicto, o Graciliano de “Em Liberdade” analisa a figura do seu amigo José Lins do Rego, simpático aos Integralistas (os “camisas verdes”). O criador de “Fogo Morto” encarna o impasse do intelectual no país — este vive na escolha entre a herança patrimonial da família, o privilégio social com seu trabalho e a realidade chocante. E ele, o artista brasileiro, sempre opta pela vida confortável e adquirida por meio das vantagens sociais. Em suma: se o pirão e a rapadura são poucos, é melhor ser egoísta.
A visão de Graciliano em 1937 (criado por Silviano Santiago) pode ser transporta para 1981 ou 2022: “O autoritarismo em Zé Lins, como entre os camisas verdes, ergue-se sobre os pilares da bondade congênita do ser humano. Compreensão política dos homens tirada do mau catecismo. Veja-se, por exemplo, o retrato do avô, generoso e justiceiro, nos primeiros livros, e o Natal dos pobres, patrocínio dos integralistas de Botafogo. Essa bondade, manifestada através da caridade, consegue efetuar uma boa divisão social dos bens comuns (?), pois os mais bem aquinhoados dão o que lhes sobra aos que têm necessidade. A necessidade sente-se suprida e caem por terra todos os gritos de descontentamento. Vivemos um clima de bem-estar geral. Não entendemos os descontentes”.
“Em Liberdade” coleciona espectros, fantasmagorias e “assombrologia” (para usar um termo corrente de hoje). Os impasses de um escritor brasileiro e os do país se repetem pela eternidade. Mais ao final do livro, Graciliano tem um sonho com Claudio Manuel da Costa, preso nos acontecimentos da Inconfidência Mineira do século 18. O então poeta acabou assassinado, mas a versão oficial foi suicídio. A intenção de Santiago foi criar um elo histórico do intelectual árcade com a morte do jornalista Vladimir Herzog, sob tortura, em 1975. É como se ficássemos presos num buraco negro particular.
Na mesma época que Silviano Santiago publicou “Em Liberdade”, dois escritores argentinos mergulharam na reflexão profunda do desastre de então em seu país. Ricardo Piglia e Juan José Saer lançaram, respectivamente, os romances “Respiração Artificial” e “Ninguém Nada Nunca” em 1980. Assim como a obra do brasileiro, eles enfrentaram o desafio de agarrar o presente pelos chifres e ajustar as contas com a História.