Deixar a terra em que se nasce, se dá os primeiros passos, vive-se os primeiros amores, as primeiras tristezas, os primeiros poucos sucessos e os muitos primeiros fracassos, e ir tentar a vida num outro pedaço de mundo, mais duro, mais árido, sobretudo à impressão mais ligeira (contudo também mais promissor e mais indulgente, uma vez que fareja possíveis boas intenções e o inegável desejo de vencer do retirante), faz de alguém um exilado irremediável na própria vida. Partir para outras experiências levando consigo pouco mais que a coragem e a cara, sabendo — ainda que não se admita nunca, nem diante do espelho num quarto escuro — que a empreitada pode acabar mal, e na melhor das hipóteses, o destino nos obrigue a voltar para de onde saímos, infinitamente mais encalacrado e frustrados do que quando ousáramos ir embora, sempre é um processo doloroso. Fica para além da eternidade um sentimento de mágoa envergonhada para com o lugar que nos pariu e, por uma razão ou outra, nos enjeitou, porque, queira-se ou não, resta um fiozinho de amor por aquela terra. Malgrado aquela paisagem reste na lembrança apenas como um retrato na parede, como disse Drummond de sua cidade natal no poema “Confidência do Itabirano”, o infeliz renegado, a tempos e tempos, nunca deixa de pensar na primeira forma de cidadania de que teve registro, perdendo-se em divagações sobre o quão diferentes as coisas poderiam ter sido.
Alan Yang experimentou, colateralmente, o travo da vida pela metade do imigrante, ainda mais ácido num tempo sem redes sociais que aplacassem um pouco do incômodo da distância e de menos informação, o que leva de maneira quase automática ao preconceito. O diretor e roteirista foi buscar em suas próprias referências de filho de imigrantes a base para “Tigertail”, sua estreia como realizador de longa-metragens, em 2020. Profundamente idiossincrásico, pungentemente lírico, o filme bebe das lembranças de Yang sobre que lhe dizia o pai — que na América anglicizou seu nome e assumiu-se Peter para sempre — acerca do que representara viver num país estranho sob o estigma escancarado de não lhe pertencer. Peter deixou Taiwan rumo ao Bronx, bairro barra-pesada ao norte de Nova York, visando a outra vida que não a de coletor de arroz. Morando num cubículo junto com a mãe, que criou sozinha outros dois filhos trabalhando numa fábrica de açúcar, Peter vislumbrou outra vida como parte do lumpemproletariado americano, sem jamais imaginar que um dia seu filho contaria sua história na tela grande.
Embora muito parecidas, as trajetórias de Peter Yang e o protagonista de “Tigertail” têm suas especificidades. Pin-Jui, papel que poderia ter sido mais bem explorado por Tzi Ma, sai de Taiwan, mas com algumas garantias, pequenas, e não vai sozinho. O vaivém proposital defendido por Alan Yang começa já no introito, quando o diretor, num plano geral à Ang Lee, apresenta o personagem central ainda menino correndo por campos de arroz de um verde cintilante, pensando ter avistado a mãe, que o confiou aos avós a fim de procurar trabalho na cidade. Em casa, Pin-Jui tem de ser escondido dos soldados de Mao Tsé-tung (1893-1976) porque ainda não tinha certidão de nascimento, política malsucedida quanto a evitar os motins que culminaram na independência da ilha do domínio chinês, em 1949. O amor dessa avó — cuja recomendação de nunca chorar em público passa a conduzir sua vida, para o bem e para o mal — se presta a alicerce para alguém à deriva no mundo.
O roteiro de Yang suaviza a solidão de Pin-Jui, mas apenas num primeiro momento, ao incluir o argumento do chefe que procura casamento para a filha, Zhenzhen, interpretada na juventude por Kunjue Li. Ainda que visivelmente tentado a aceitar a proposta do industrial e desposar sua filha, ganhando em troca apenas a passagem para os Estados Unidos e algum dinheiro para alugar uma cabeça de porco num edifício decadente na periferia nova-iorquina, o estranhamento do jovem operário, um desempenho acima da média de Lee Hong-chi, é a subtrama que “Tigertail” — “rabo de tigre” em tradução literal, uma alusão a estar, mesmo que por baixo, perto dos mais fortes — incorpora até o desfecho. Ele não conhece Zhenzhen o suficiente, muito menos para casar-se com ela, e ainda que conhecesse, é apaixonado por Yuan. Mesmo que quase somente afetiva, a participação de Yo-hsing Fang se constitui um achado. É impossível não se deixar levar por um torvelinho de emoções quando da sequência à margem do rio, à noite, depois de saírem de um jantar romântico fugidos, sem pagar a conta, e se entregam a descoberta do sexo com amor, para Pin-Jui, e do sexo e da certeza de que aquilo tudo é mesmo amor, para Yuan. Vem à superfície a vontade de rir com eles e o espectador imediatamente se transporta para momentos já borrados da própria juventude, em que teve (ou quis ter, ou esteve próximo disso) vivência semelhante.
O casamento de Pin-Jui e Zhenzhen, claro, não vai longe, e no terceiro ato de “Tigertail” Yang se debruça sobre Angela, a filha nascida em solo americano. Bem-sucedida, mas sempre numa corda bamba emocional, Angela, bem composta por Christine Ko, explica boa parte da angústia do protagonista, que sente-se mais e mais culpado à medida que retoma o contato com ela, uma relação paradoxalmente complexa, já que, por mais que se esforce, não chega nunca a vencer a imensa muralha que a distância lhe impôs quanto a sua única filha. Novamente mediante flashbacks, o diretor saca da memória de seu personagem central trechos que explicariam tamanho descompasso. Num recital de piano, Angela, ainda garota, se atrapalha com uma nota e, não obstante aplaudida, o público nota seu deslize. No caminho para casa, o pai faz questão de manifestar seu desgosto, acusando-a de tê-lo feito passar uma das grandes vergonhas de sua vida, justo a ele, que passara por tantos dissabores ao longo da transição da Ásia para a América, e vencera. Pouco tempo depois, Zhenzhen, papel de Fiona Fu na maturidade, pede o divórcio. Nem o ressurgimento de Yuan — primeiro com a ajuda de uma rede social, depois em carne e osso — o alegra. Agora na pele de Joan Chen, Yuan é uma mulher sofisticada, exuberante até, que perdoa o ex-amante por ter, chamem-se as coisas por seus verdadeiros nomes, fugido, mas o faz entender o que ele já sabe: o tempo deles está morto.
O texto e a condução sensíveis de Yang são colocados à prova no encerramento, quando pai e filha fecham um ciclo iniciado cerca de meio século antes, e tudo acaba onde começou. Apostando nesses tropos de que o destino é mesmo o mais soberano dos senhores do homem, e o mais controverso, tirano ou benevolente, conforme as escolhas de cada um, “Tigertail” é um dos grandes enredos épicos do cinema asiático recente. Em tendo cautela um pouco maior quanto à escalação do elenco, Alan Yang pode ser tornar o Kurosawa de sua geração.
Filme: Tigertail
Direção: Alan Yang
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 9/10