Depois da graduação na universidade, existe uma série de etapas a serem superadas para que alguém seja considerado, enfim, um adulto, e, portanto, dono da própria vida. O primeiro emprego é, decerto, a mais importante delas, mas apenas a ignição original de um processo longo, moroso, sobre o qual ninguém pode cravar um tempo exato de conclusão, nem mesmo garantir se haverá conclusão. Em se estando devidamente empregado, recebendo-se salário e abrigado sob o guarda-chuva de direitos que a lei assegura, parte-se para uma escalada meticulosa rumo a promoções e exercícios quase autofágicos de demonstração de competência, em que o equilíbrio de sutileza e espírito competitivo pode ser a diferença entre ganhar e perder. Sobe-se um pouco a cada dia, galgando-se novos postos, novas redes de influência e outras obrigações, tudo com um propósito muito claro: casar e constituir família, que a essa altura, já terá um teto para transformar em seu santuário íntimo. É assim mesmo nas sociedades mais arrojadas do mundo e a Índia, com seu rol de costumes e tradições milenares, faz questão de que tal pensamento esteja sempre sob constante ratificação.
O indiano “Amor por Metro Quadrado” (2018) se alonga sobre dois colegas de trabalho cujas vidas poderiam nunca se cruzar, mas que se conhecem em circunstâncias inusitadas e se unem, não exatamente por algum interesse sensual que caminha para a experiência do sentimento amoroso, mas para dar cabo de uma demanda básica na vida de um indivíduo adulto. Sanjay Chaturvedi, o atrapalhado personagem de Vicky Kaushal, abre o filme de Anand Tiwari escovando os dentes no terraço da casa em que mora com os pais, Bhaskar e Lata, de Raghubir Yadav e Supriya Pathak, além de irmãos e mais uns tantos parentes. Ter se tornado um engenheiro de software de relativo sucesso não contribuiu em nada para sua caminhada rumo ao amadurecimento pleno e a limitação da influência do pai e sobretudo da mãe em sua vida prática, sempre uma questão de peso nada desprezível no modo de vida hindu. Mas a culpa não é dele, ao menos não completamente.
A sufocante densidade populacional da Índia, com quase um bilhão e meio de pessoas forçadas a dividir um espaço a cada dia mais exíguo, gera, além da poluição do ar e da água em níveis perigosos e do trânsito caótico, problemas de há muito conhecidos, a especulação imobiliária que faz com que qualquer apartamentozinho num dos incontáveis arranha-céus de Mumbai — que se esticam um pouco mais à medida que os anos avançam, aproveitando todo o espaço disponível —, por mais acanhado, custe muito mais do que um trabalhador assalariado consegue pagar. Este também é o drama de Karina D’Souza, da excelente Angira Dhar, a analista de crédito que dá expediente poucos andares abaixo do escritório onde Sanjay trabalha, e dedica o escasso tempo ocioso que lhe resta a fim de arranjar os últimos detalhes do casamento com Samuel Misquita, vivido por Kunaal Roy Kapur, inclusive, por óbvio, uma frequente (e torturante) prova do vestido de noiva, com a anotação diligente de todas as medidas da futura senhora Misquita e a realização dos ajustes de praxe por sua mãe, Blossom, de Ratna Pathak. Uma sucessão de pequenas e bem conduzidas reviravoltas no roteiro de Tiwari e Sumeet Vyas a leva ao rompimento com o noivo, e a posterior aproximação entre Karina e Sanjay, visando a um objetivo em comum — e não muito sentimental — passa a ser de fato o leitmotiv do trabalho do diretor.
O encontro dos dois protagonistas, que degringola num pacto algo sinistro, tem de, antes de mais nada, vencer diferenças insinuantes em maior ou menor proporção na vida dos dois. Ele é um ateu praticante, mas de formação hinduísta, enquanto ela é uma cristã convicta; a família de um é dada a rompantes e explosões, tanto para o bem como para o mal; a da outra, sóbria e voltada à espiritualidade mais circunspecta. Mesmo vítimas de diferenças tão avassaladoras, eles poderiam ser medianamente felizes, não fosse a marcação cerrada de Rashi Khurana. A chefe de Sanjay interpretada por Alankrita Sahai, o verdadeiro respiro cômico da história, se furta a assumir a paixão inconsequente que nutre pelo subordinado, ao passo que urde situações que o expõem ao ridículo e que tornam seu relacionamento com Karina um pouco mais próximo do inexequível. E, por conseguinte, vai morrendo também a possibilidade dos dois realizarem o sonho que os unira.
Tiwari leva a narrativa de seu filme para uma confessa e defendida pieguice, mas não só nas sequências em que os tipos vividos por Kaushal e Dhar protagonizam arranca-rabos melodramáticos. Nas entrelinhas, sua entrega à elucubrações como a que questiona a pobreza como a grande tragédia humana, devastadora a ponto de esmagar os espíritos, longe de fortalecer a discussão fulcral de “Amor por Metro Quadrado”, trinca uma estrutura que vinha dando certo. Sanjay e Karina são um casal carismático, que consegue despertar a torcida do público, pressuposto básico de qualquer comédia romântica que se preze. A entrada em cena da personagem de Sahai, estudadamente pueril e vilanesca, sacode a pasmaceira que ameaçava se formar no enredo na hora certa, quiçá o ponto alto do longa. Rashi enfatiza a natureza nonsense do trabalho que vinha sendo apresentado, e o espectador embarca na loucura que reina até (ou sobretudo) no desfecho. Um elogio que o filme faz ao amor, sempre ridículo se verdadeiro.
Filme: Amor por Metro Quadrado
Direção: Anand Tiwari
Ano: 2018
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10