Dois homens resolvem se casar. Ambos ostentam barba cerrada, postura ereta e a certeza de sua decisão perante o celebrante disposto a abençoá-los. Detalhe: um dos noivos traja enorme vestido branco de cauda que se estende por metros e metros sobre um tapete vermelho-sangue.
Foi com essa imagem que me deparei logo de manhã no início dessa semana. A legenda que colocaram na fotografia foi “dê um título”.
Como era de se esperar, o tapete combinou exatamente com o sangue escorrido dos comentários. “Nojo”, “fim dos tempos”, “vergonha” e “falta de surra” fizeram parte do mosaico de intolerâncias de um Brasil de tantas diversidades e preconceitos velados.
Ao serem questionados sobre suas manifestações pouco cordiais, os internautas responderam basicamente o clássico “é a minha opinião e não vou mudá-la porque é politicamente correto achar lindo um homem vestido de noiva.”
“É apenas a minha opinião.”
O que significa isso? “Detesto todo e qualquer gordo e é a minha opinião que eles sejam proibidos de ocupar cargos públicos. É a minha opinião que homens tenham posse e propriedade sobre as mulheres e defendo a criação de uma lei para permitir aos maridos que usem de força bruta para lidar com elas. É minha opinião que a escravidão deva voltar. Aliás, é minha opinião que a própria Democracia, esta mazela moribunda, seja extinta o quanto antes.”
Sim, é claro que a Democracia protege a liberdade de expressão, que, diga-se de passagem, é um dos pressupostos basilares de sua própria existência. A liberdade de expressão garante que cada pessoa se identifique e se posicione na sociedade. O que se esquece, no entanto, é que outro elemento fundamental da Democracia é a fraternidade. Trata-se, portanto, de questão que vai muito além do tipo de governo, ela veio para garantir uma filosofia.
“A Democracia é primariamente social, moral e espiritual e secundariamente política. É uma filosofia de vida, tanto como uma teoria de governo. É inspirada por um duplo conceito do indivíduo, da dignidade de sua pessoa, da santidade de seus direitos, da exigência de suas potencialidades em direção a um desenvolvimento normal.” (William Kerby).
O próprio preâmbulo da nossa Constituição traz a fraternidade como elemento social, de maneira que, embora a Democracia prime pela liberdade de expressão, é fundamental lembrar-se de que esse sistema dialoga mais com os direitos do homem em sua condição de ser humano do que com o homem como cidadão.
A célebre frase “é apenas a minha opinião” pode estar envolta pelo manto da liberdade de expressão, mas a coberta é curta e deixa os pés de fora. Antes de tudo, é fundamental que se busque enxergar o outro como irmão, partindo-se de pressupostos minimamente éticos. Usar esse manto para justificar qualquer forma de violência, calúnia, obscenidade ou subversão evidentemente não encontra substrato ético ou democrático.
Um conceito que tem sido bastante trabalhado e comentado ultimamente é o da tolerância ativa. Mais do que apenas aceitar a existência do outro e deixá-lo em paz, contanto que ele esteja longe de quem tolera, esse conceito busca a consciência coletiva de que a diversidade não deve ser apenas aceitável, mas tida como fundamental. Essas divergências tornam o mundo interessante e rico.
Dentro desse contexto, torna-se evidentemente não apenas permitido, como também necessário, que exista a discórdia. A grande questão – e poderíamos volver infinitas páginas sobre o assunto, sem ainda alcançar uma conclusão – é que, mesmo dentro da tolerância ativa, a linha entre a intolerância criminosa e a liberdade de expressão efusiva mostra-se muito tênue.
Não é porque o horror à diferença se traveste de “minha opinião” ou de ideologia que ele deixa de ser perigoso. Os maiores genocídios da história da humanidade partiram de pequenas intolerâncias individuais, que se adensaram para encontrar guarida na intolerância do próximo, até que um grande líder finalmente começasse a entoar o mesmo discurso. Independentemente de suas raízes — científicas, filosóficas, ou mesmo de pura ignorância — a rejeição da diferença pode conduzir a um banho de sangue.
De toda forma, muito além de qualquer questão jurídica, ou política, que são naturalmente controversas e poderiam gerar um debate em espiral infinita, a questão vai muito além. Talvez o maior questionamento deva ser individualmente feito, com o espírito voraz devidamente dominado ao menos por um instante de honestidade silenciosa, para que a verdadeira compreensão se instale.
Quem sou eu que, sem nenhuma finalidade racional, tenho a necessidade incontrolável de gratuitamente agredir o próximo por sua diferença, ainda que ela não atente contra mim?
Quem sou eu, que preciso gritar ao mundo que não concordo, desprezo e demonizo quem não segue os padrões tidos por mim como corretos?
Quem sou eu, que sinto qualquer forma de prazer ao achincalhar alguém apenas por deleite momentâneo, com a plena consciência de que não haverá, a partir daí, um debate frutífero?
Quem sou eu, que, dentre tantas opções que me são oferecidas a cada segundo de vida, decido gastar meu tempo para envidar esforços a denegrir a realidade fugitiva de minha compreensão?
Afinal de contas… quem sou eu?