Existem histórias que encantam justamente pela simplicidade, apenas por remeter o público a sentimentos que ele decerto identifica sem maiores hesitações e com os quais se costuma desde tenra idade. O amor romântico, por exemplo. Todos temos um relato acerca de um namorico de infância, que depois de não muito tempo, claro, chega ao fim; passado ainda menos tempo, sabemos perfeitamente que o tal “amor” era qualquer coisa — afinidade, um desejo incipiente e precipitado, uma inevitável brincadeira de criança —, mas não amor, e mesmo essas experiências têm sua vez e sua importância. No mínimo, nos ensinam a prestar mais atenção, em nós mesmos e no outro; no máximo, preparam-nos o espírito para o amor de verdade.
O fenômeno da idealização do amor começa pari passu com a ânsia por se descobrir enamorado e objeto da paixão de alguém. A indústria o sabe perfeitamente e não é coincidência a pletora de enredos surgidos ao longo do Renascimento, do medievo e mesmo da era pré-cristã que exploram a narrativa do amor impossível, que concretiza e se consuma depois de uma sucessão aparentemente interminável de descompassos e segue sem maiores avalos eternidade afora. O próprio romance original, o de Adão e Eva, narrado no “Gênesis”, seria um desses, não fosse a entrada em cena de uma determinada serpente, elemento dramático-estético forte o suficiente para simbolizar a um só tempo o mal e a sede de mudança que escraviza grande parte da alma humana. O romance do primeiro homem e da primeira mulher seria também o primeiro amor perfeito — não fossem as tantas outras necessidades com que a cobra enfeitiçou Eva, que enfeitiçou Adão. Os dois se perderam e cá estamos nós.
A Walt Disney Company entendeu como ninguém o quão populares eram essas tramas de amor e seus enroscos e as adapta até hoje, com mais ou menos sucesso, malgrado seus filmes, sinônimo de excelência técnica e sensibilidade artística, sejam quase sempre campeões de audiência. O conto de fadas “A Bela e A Fera” possivelmente é o maior paradigma de como um texto é capaz de fazer frente ao passar dos anos e verdadeiramente renascer em mãos hábeis. O argumento da donzela bonita, cujo pai é encarcerado por uma criatura teratológica, meio homem, meio besta, e que se oferece em sacrifício, inicialmente apenas para salvá-lo, foi o grande destaque entre os lançamentos para espectadores de até 14 anos em 1991, e não foi a primeira. Quase meio século antes, em 1946, o diretor francês Jean Cocteau (1889-1963) já havia transportado a alegoria da também francesa Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1711-1776), escrita em 1756 para a tela, e o mesmo fez Christophe Gans, compatriota deles, em 2014.
A versão de Gans cumpre todas as etapas que se espera de uma produção tão rica em detalhes. O diretor opta por dar tratamento metalinguístico a seu trabalho, trazendo a história principal aos poucos, introduzida por uma mulher, que a lê para duas crianças, seus filhos. Essa mulher é Léa Seydoux, que vive a Bela do título, filha do pequeno burguês viúvo e falido de Andre Dussollier. O pai de Bela é alijado de sua fortuna ao não ser autorizado a resgatar a carga de seus navios, antes perdidos no oceano, mas recuperados e ancorados no cais. O velho comerciante é obrigado a se mudar com os outros cinco filhos, outras duas moças e três rapazes, para um casebre acanhado no campo. Enquanto trata dos trâmites burocráticos para a mudança, o personagem de Dussollier aproveita para explorar a cidade, numa última oportunidade de sentir-se parte daquele mundo. É quando entra sem querer na propriedade da Fera, de onde colhe a rosa que a filha lhe havia pedido.
“A Bela e A Fera” de Gans não sai muito do já apresentado por Cocteau em 1946 ou pela Disney em 1991, sob a batuta de Gary Trousdale e Kirk Wise: as reviravoltas, envolvendo Bela, seu pai e a Fera são as mesmas — a mocinha de Seydoux vai parar no castelo do anti-herói, uma performance visivelmente complexa, mas que Vincent Cassel executa com galhardia, pela razão que se sabe, ainda que o esforço lhe reste baldado, porque o pai adoece, vítima do que se passa a seguir, só recobrando as forças por nova interferência da protagonista —, o que muda é a maneira pela qual Gans opta para encadear esses eventos e a energia que concentra em cada um. O emprego da computação gráfica chega a ser abusivo, como no trecho em a Fera persegue uma gazela durante uma caçada e a fere de morte com uma flecha, apenas para descobrir que seu alvo não se tratava de uma gazela. A partir desse momento, se desenrolam os lances mais funestos e decisivos do longa, com o final feliz (e previsível). Outro detalhe que incomoda puristas e não puristas, este de ordem semântica, é falta dos objetos animados que emulam seres humanos e retomam sua forma original no desfecho da produção da Disney dirigida por Trousdale e Wise; sem dúvida, este “A Bela e A Fera” perde muito do encanto sem eles.
Christophe Gans empreende uma louvável diligência quanto a fazer com que aquela chama continue ardendo em sua versão da obra de Beaumont, mas algo fica pelo caminho. Pode até ser que “A Bela e A Fera”, em meio aos relacionamentos fugazes do homem deste século e ao uso indiscriminado da tecnologia, tenha ficado obsoleto, mas talvez houvesse alguma possibilidade de ainda fazê-lo brilhante. Não é que seu filme não o seja; o problema é que a história em si não faz concessões.
Filme: A Bela e A Fera
Direção: Christophe Gans
Ano: 2014
Gêneros: Fantasia/Romance
Nota: 8/10