Traumas de um passado que insiste em não passar e tornam-se parte da vida de alguém tendem a dar em bons filmes. Não é exatamente simples fazer com que o público se interesse por narrativas propositalmente intrincadas, que não se resolvem em uma ou duas sequências, liberando a história para o conflito seguinte, como uma linha de montagem que não pode se dar o luxo de perder nada, nem a menor rebarba, sob pena de, ao fim do expediente, a conta não fechar e pescoços serem levados ao cadafalso. “Pássaro do Oriente” não se furta a desempenhar essa função, a do filme-enigma, o que, por óbvio, entedia, aborrece, desgasta, abespinha boa parte dos espectadores, mormente em tempos de uma facilidade ilusória, em que todas as situações, mesmo as fictícias, têm de se resolver a toque de caixa, ou arque com as consequências por ferir suscetibilidades de gente que se recusa a crescer e a lidar com as inúmeras frustrações que a vida, essa pândega, nos lança ao rosto todo santo dia, sejamos ou não capazes de tirar-lhes o pesado véu.
Adaptado do romance “Delito Sem Provas”, de Susanna Jones, o filme de Wash Westmoreland, lançado em 2019, encontra no material de origem, publicado no Brasil dezoito anos antes pela Editorial Presença, um manancial de boas referências e, ainda assim, manifesta a louvável ousadia de propor arcos não totalmente explorados pela autora, talvez por alguma justa razão mercadológica de fazê-lo no produto cinematográfico. E este é precisamente o pulo do gato aqui: decerto o leitor compreende que, por mais que um escritor se empenhe, nunca há de conseguir fazer quem o lê ter a exata dimensão do que terá querido transmitir. Na verdade, o registro de uma trama inicialmente vertida em livro para filme também não é garantia alguma de que saia tudo conforme o artista concebeu idealmente, mas só o fato de se ter diante de si algo pouco mais palpável que a evanescente imaginação já consola, quiçá o próprio dono da história, que, a depender do talento do diretor, pode até terminar se convencendo de que era aquilo mesmo que pretendia comunicar. As teorias de Burke sobre a convergência de mídias nunca foram tão certeiras, ao menos no que respeita a estabelecer uma ponta razoavelmente sólida entre um veículo mais antigo e outro cuja modernidade e constante modernização são sua razão de ser essencial. “Pássaro do Oriente” tem o condão de ser, a um só tempo, fiel ao texto corrido e um exemplo cabal do que pode o cinema ao flertar com a literatura.
O roteiro do próprio Westmoreland investe — ou talvez o verbo que melhor se adequa a suas pretensões seja “apostar” — no mistério, deixando de lado o enredo de Jones para assumir seu próprio ponto de vista sobre o que leu no trabalho da romancista. O drama de “Delito Sem Provas” cede lugar à tensão incessante defendida pelo longa, contudo (e, uma vez mais, a delicadeza das intenções é determinante) nem sempre: há momentos de anticlímax emocionais, até pegajosos, na abordagem do diretor que fisgam a audiência por se confessarem puramente instintivos. Ao passo que o suspense necessita de elaboração, de frieza, de cálculo, a condução de um eixo narrativo tomando por guia a exploração de reações comoventes é uma habilidade sensorial por excelência e, possivelmente por esse motivo, tão mais complexa. E de nada valeria tamanha dedicação sem atores que proporcionassem segurança a um filme tão perigosamente denso.
“Pássaro do Oriente” poderia se resumir à presença cada vez mais grandiloquente de Alicia Vikander. Sua autoexpatriada Lucy Fly, uma sueca que vai parar em Tóquio depois de uma sucessão de tragédias pessoais consegue se ombrear a suas personagens anteriores, conhecidas pela alta octanagem dramática. No filme de Westmoreland, Vikander está tão bem quanto em “Ex_Machina: Instinto Artificial” (2015) — e ela só não está melhor no longa de Alex Garland porque aparece muito menos do que o desejável — e seu desempenho como Lucy Fly se compara à Gerda Wegener de “A Garota Dinamarquesa” (2015), dirigido por Tom Hooper, papel pelo qual venceu com todo o mérito o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Trabalhando como tradutora, é evidente a inadequação da protagonista a uma cultura que a faz parecer pouco mais cômoda que um peixe fora d’água, e claro que a violência de tais inquietações se derrama em sua vida pessoal, primeiro no romance com Teiji, de Naoki Kobayashi, com quem nunca consegue estabelecer vínculos realmente profundos. Não muito tempo depois, a pungente fragilidade espiritual de Lucy abre a guarda para que outros parasitas lhe infestem a alma e adoeçam também seu corpo, como a dissimulada Lily Bridges de Riley Keough, cuja trajetória de ex-enfermeira nos Estados Unidos a bartender na capital do Japão se assemelha a da personagem central. Westmoreland mais uma vez se arrisca, mas quebra a banca centrando uma boa medida de suas fichas no talento de Keough, em cuja figura acintosamente dúbia o filme passa a mirar. Lucy se vê implicada num sem fim de circunstâncias esdrúxulas em que Lily assume destaque, crescendo a pouco e pouco na história, ambientada na década de 1980, enquanto a protagonista lhe dá o aporte necessário até o desfecho — que deixa quase tudo por ser devidamente aclamado.
O suspense dramático do filme não é para todos, e essa é sua principal qualidade e seu maior defeito. Wash Westmoreland parece ter ojeriza a tornar mais simples a vida de quem assiste a “Pássaro do Oriente” e entender a visão de mundo de Lucy Fly, alguém com um gosto todo especial e autodestrutivo por estar sempre a se perder conta tanto contra como a favor de quem a avalia. Ao cabo, só resta torcer para se ouvir o canto da ave misteriosa depois que a terra treme.
Filme: Pássaro do Oriente
Direção: Wash Westmoreland
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Mistério/Romance
Nota: 9/10