O filme de amor da Netflix doce e delicioso como um pudim de caramelo Kerry Brown / Netflix

O filme de amor da Netflix doce e delicioso como um pudim de caramelo

Desde os primeiros minutos, sabe-se muito bem o que vai acontecer em “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” (2018), e nem por isso ninguém deixa de assistir até o desfecho, previsível e emocionantemente ingênuo, ao filme do inglês Mike Newell e, claro, de torcer muito por ele. Newell talvez seja dos diretores mais old school de Hollywood, e, a despeito do gênero, esse seu senso de tradição se reflete em sua toda a sua obra, de uma maneira ou de outra. “Reykjavik” (2012), sobre a disputa entre Estados Unidos e União Soviética pela hegemonia militar-econômica num mundo organicamente polarizado ao longo da Guerra Fria (1947-1991), decerto é seu trabalho mais elaborado, mas esticando-se a corda um tanto, poder-se-ia afirmar que o longa de 2018 se configura como uma espécie de prequel, de introito, ao realizado seis anos antes.

“A Sociedade Literária” começa em 1941, numa tomada grande angular em contra-plongeé que captura toda a magnificência do céu da ilha de Guernsey, no Canal da Mancha, a meio caminho entre Inglaterra e França. Os soldados de Hitler se apossaram desse território tão mágico quanto maldito de modo especialmente invasivo, e a sequência em que uma tropa interdita a passagem de um grupo de moradores e começa um interrogatório desprezível, com o objetivo de intimidá-los, quebra o encanto do que se imaginou encontrar no roteiro de Don Ross, Kevin Hood e Thomas Bezucha. Eben Ramsey, o chefe do serviço postal vivido por Tom Courtenay, reage da forma mais natural e justa, ao passo que a história se encaminha para dar um salto de cinco anos, momento em que o Reino Unido envida todos os esforços a fim de, literalmente, se reerguer após os seis anos que a Segunda Guerra Mundial surrupiara dos cidadãos comuns, de 1939 a 1945. Juliet Ashton, a escritora londrina algo fora do que se espera de alguém com esse perfil, personificada pelas aptidões técnicas e o talento comovente de Lily James, observa o que restou de sua cidade e manifesta um choque entre incrédulo e aparvalhado enquanto conserva com seu editor, Sidney Stark, do ótimo Matthew Goode, numa performance que se ombreia ao melhor de Cary Grant (1904-1986) e James Stewart (1908-1997). Stark, um homem aferrado ao trabalho, mas vítima de uma afetação que o isola do mundo real — e sufoca a humanidade nele — anseia que Juliet alugue um belo apartamento e aceite o máximo de encomendas que conseguir, numa tentativa de fazer com que sua cliente aproveite a retomada da economia e a necessidade de escape da dureza da vida cotidiana que todos manifestam sem receio e ancore de vez sua carreira. A escritora se atém ao desejo de Stark, mas apenas à segunda parte dele; Juliet está verdadeiramente interessada em saber como têm vivido as pessoas nesses tempos ainda austeros, mas não guardada numa caixa de cristal. Decidida a conhecer Guernsey e seus moradores, com quem vinha se correspondendo — inclusive com Ramsey —, a personagem de James parte numa longa viagem, um deslocamento muito mais metafísico que propriamente de uma metrópole para uma ilha perdida na imensidão do Atlântico Norte.

A chegada de Juliet àquele universo paralelo é marcada por pequenos incidentes, dos quais escapa ilesa, e por um encontro fugaz, mas cuja força define sua vida e o filme, como se de fato escrito nas escritas, com a licença do clichê. Uma contingência inesperada a encaminha à casa de Ramsey, seu amigo por correspondência, e aquelas almas ao mesmo tempo tão próximas e tão encrustadas no seu próprio habitat, separadas por quilômetros, décadas e vivências, mas dotadas de visões de mundo semelhantes, igualmente voltadas ao pathos, ao sentir e ao sofrer, àquela coisa a que ninguém sabe dar nome, mas que todos sabemos definir muito bem, tornam “A Sociedade Literária” ainda mais cheio de vida. A protagonista se hospeda na casa de Charlotte Stimple, de Bronagh Gallagher, talvez a única moradora de Guernsey que não manifesta qualquer interesse pelo clube de leitura que congrega o vilarejo desde o curso da guerra. Charlotte, participação afetiva de Bronagh Gallagher que enriquece sobremaneira a trama, pelo contrário, acha aquilo uma perda de tempo e até tenta difamar os membros do grupo fundado por Elizabeth McKenna, papel de Jessica Brown Findlay, ainda que sinta que Juliet, por óbvio, também é um deles.

Numa das vezes em que comparece à Sociedade Literária de Guernsey, a escritora fica sabendo que Elizabeth já não mora mais na ilha e traçando um plano de investigação apenas mental, chega à conclusão elementar, que o espectador talvez já tivesse alcançado. Essa subtrama, anticlimática por natureza, gira em torno da guerra e da ocupação nazista, claro, e a empreitada de Newell quanto a manter o mistério o mais velado que conseguir resta pateticamente baldada, tanto mais porque, vira e mexe, feito um espectro, a figura da personagem de Findlay volta mediante sequências em analepse, desnecessárias. Teria sido muito mais producente concentrar a narrativa na participação de Juliet nas tertúlias com os outros leitores de Guernsey, em que passa a conhecer melhor um membro em especial — além da famosa iguaria que dá nome à associação, tão saborosa que só desce com uma boa talagada do gim fabricado por Isola, o respiro cômico a que Katherine Parkinson dá vida.

O interesse romântico de Juliet pelo fazendeiro Dawsey Adams, vivido por Michiel Huisman, por quem troca o diplomata almofadinha Mark Reynolds, de Glen Powell, também eram favas contadas, mas essas obviedades, estranhamente, não se sobrepõem ao lirismo do trabalho de Newell. Sem medo de soar piegas — e muitas vezes o filme resvala no sentimentalismo gratuito como se não houvesse amanhã —, “A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” remete o espectador a uma época em que sonhar com a certeza de que o gênero humano partia numa aventura muito mais afortunada era não só desejável, mas imprescindível. Cerca de um ano depois, a humanidade voltou à roda viva de paranoia, espionagem, contraespionagem, guerras não declaradas, até degringolar outra vez num conflito descaradamente truculento. Não aprendemos nada, não esquecemos nada, mas mesmo assim o cinema se condói de nós.


Filme: A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata
Direção: Mike Newell
Ano: 2018
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10