Em narrativas modernas, seja no cinema, seja na literatura, nada parece acontecer de extraordinário. Mas são essas histórias que vão fundo em grandes questões individuais e sociais. O filme japonês “Drive my Car” (2021), de Ryusuke Hamaguchi, é um achado no momento que se consolida o streaming com seus thrillers, comédias, e as salas de exibição caminham para o fechamento. Uma história de quase três horas de duração virou símbolo de ousadia e foi premiada neste ano com o Oscar de melhor filme em língua estrangeira.
Hamaguchi criou um filme a partir de três contos do livro “Homens sem Mulheres”, escritos pelo mundialmente celebrado escritor japonês Haruki Murakami. Os personagens centrais saíram de “Drive my Car”, e a esse conto foram acrescentadas as histórias de “Kino” e Sherazade”. A costura feita pelo diretor resultou quase em um romance, com mais personagens e situações. Ficou preservado o núcleo da trama que dá título ao filme: uma história que aborda o luto e a encenação teatral.
O filme é melhor que os contos de Murakami. Na tela, as vidas dos personagens são vistas como um processo, e não como algo acabado. Há incongruências, falhas, tempos mortos. A primeira das três partes expõe a relação conjugal do ator Yûsuke Kafuku (interpretado por Hidetoshi Nishijima) com sua esposa, a roteirista Oto Kafuku (Reika Kirishima). O casal vive em Tóquio, onde nada de novo parece ocorrer. Ela é a contadora de histórias, uma Sherazade, para envolver suas vítimas e flertar com a morte.
Nas primeiras cenas, Yûsuke aparece numa encenação de “Esperando Godot”, de Beckett. O diretor deixa claro a centralidade da questão teatral no filme. Arte pública por excelência e chave que inspirou a psicanálise, o teatro é usado para se misturar à vida dos personagens. No dia a dia, o marido Yûsuke pede à esposa Oto para gravar falas de peças e assim ouvir no toca-fitas do carro como uma forma de ensaiar. O carro dele é sueco da marca Saab — Murakami é tradutor de literatura da Suécia.
O casal passa a viver como se estivesse numa sessão da peça “Tio Vânia”, de Tchekhov, escrita 1899 e 1990. O imaginário da Rússia do século 19 se mescla ao Japão de hoje, com sua modernidade e o passado traumático da bomba atômica. A segunda parte de “Drive my Car” trata da ida de Yûsuke para a cidade Hiroshima (símbolo maior do desastre contemporâneo), onde dirige a peça tchekoviana que ele tanto ensaiou e chegou ao ponto de se sentir incapaz de representar o personagem Vânia.
É na temporada em Hiroshima que tem início a relação de Yûsuke com Misaki Watari (feita por Tôko Miura), a motorista que dirige seu carro enquanto ocorrem os ensaios e a temporada da peça. As conversas deles se transformam em monólogos e se misturam às falas gravadas da obra de Tchekov, que eles ouvem no carro durante os trajetos pelas ruas e estradas da cidade japonesa. Ao mesmo tempo, os ensaios de peça são reveladores porque a ideia é fazer uma encenação em várias línguas.
Na terceira parte, Yûsuke e Misaki fazem uma longa viagem dentro do Japão para visitar o local onde a casa da mãe dela morreu tragicamente soterrada. Histórias dos personagens se tornam um crescente relato das formas de luto pela perda de uma pessoa próxima. O filme aborda com extrema sutileza e profundidade os inúmeros lutos. Nesse ponto, entra um quarto personagem central, o ator Kôshi Takatsuki (Masaki Okada), que é dirigido por Yûsuke em sua versão do “Tio Vânia” e teve um caso amoroso com Oto.
Tchekov é sempre um convite para pensar a melancolia humana, as transformações de uma sociedade como a Rússia e a dificuldade de comunicação entre as pessoas. “Drive my Car” parece uma grande busca pelas formas de conversar e de ser compreendido — e o teatro é a arte suprema da fala e do diálogo (ou a sua falta). Nas últimas décadas, a obra tchekoviana inspirou o filme “Tio Vânia em Nova York” (1994), de Louis Malle, e, também, o documentário “Moscou” (2009), de Eduardo Coutinho.
O trailer de “Drive my Car” sugere uma história até certo ponto leve, boa de se assistir antes de dormir. O filme propriamente dito é contrário disso: é um estimular a pensar e a entender os caminhos daqueles personagens. Em momento sublime, o diretor Hamaguchi coloca uma personagem muda para interpretar Sônia da peça de Tchekov. O silêncio, os gestos de falas apenas com as mãos, são as formas para explicar ao Tio Vânia os sentidos das coisas do mundo — ali parece que Beckett das primeiras sequências volta à cena.