Estreou em março deste ano a refilmagem da telenovela “Pantanal”, que a TV Manchete exibiu em 1990 e foi um dos maiores fenômenos de audiência no país. Mais de trinta anos depois, volta aquela mistura do universo mágico de Guimarães Rosa com a brasilidade afetiva de Jorge Amado. A história da novela coincidiu originalmente com o surgimento da imagem de um Novo Brasil dos espaços interioranos e rurais, em contraposição à crise dos centros urbanos que tinham desemprego, hiperinflação, assaltos e homicídios.
Ao mesmo tempo que se encantava com os personagens Juma e José Leôncio, o público da década de 90 passou a ouvir maciçamente as duplas de música sertaneja. Até casas de show no Rio de Janeiro recebiam os cantores do interior de São Paulo, da região do Triângulo Mineiro e de Goiás. Canções singelas de amores perdidos e cenas de boiadas no Pantanal: a cultura do Brasil se reconfigurava para se ajustar a uma situação de um país sem indústria, sem tecnologia e com suas supostas “raízes” escondidas.
O campo brasileiro poderia ser a redenção para a crise sem fim nas cidades. Esther Hamburger analisou bem o significado daquelas imagens na televisão e fez uma relação de “Pantanal” com os movimentos de sociedade brasileira como um todo:
“[A telenovela] ‘Pantanal’ oferece um visual alternativo ao das perturbadas cenas urbanas. A novela conclama a busca das raízes ‘no coração do Brasil’, nas paisagens exóticas do interior. Longos planos da paisagem rural, água límpida e despoluída e muita mata, acenam com uma possibilidade de redenção ao pesado ambiente urbano das grandes metrópoles. O cenário bucólico é curiosamente associado à nudez feminina e à recomposição da família em torno do patriarca e de seus filhos homens.”
As imagens do “coração do Brasil” mostraram que havia no mundo rural uma alternativa — justamente o campo que antes foi interpretado por historiadores e sociólogos como símbolo do “atraso”. O público não estava apenas diante de uma telenovela ou de uma mera canção popular para entretenimento. O que começou ali foi a mudança da “narrativa da nação”, como diriam Homi K. Bhabha e Benedict Anderson. Uma narrativa que construía e consolidava a ideia de um Brasil Profundo, rural, patriarcal e reacionário.
Fantasia rural
A partir dos anos 1990, as visões sobre o interior sofreram um ajuste considerável no imaginário brasileiro. O escritor Jorge Caldeira iniciou, por exemplo, a tarefa de valorizar os “empreendedores” do sertão e a desconstruir a figura clássica do “latifundiário”. A intenção foi a de desfazer a imagem da fazenda como núcleo do atraso nacional. Aos poucos, começou a se difundir a interpretação de um local dinâmico, pujante e gerador de riqueza — e não mais de predação e exploração de escravos.
Em formatos populares e didáticos, os livros de Caldeira assumiram a missão de enterrar as obras de Caio Prado Jr. ou de Sérgio Buarque de Holanda, que criticavam a herança rural e defendiam a modernização por meio da vida urbana e da industrialização. O novo mito da origem nacional, baseado no espaço rural, ganhou ares respeitáveis — nada para se envergonhar.
A operação cultural (uma faxina histórica) corria junto com os movimentos políticos e econômicos dos anos 1990. Na época, o país entrou da cabeça aos pés no processo de globalização com o Plano Real, em 1994. Diante de resultados pouco animadores, os porta-vozes do governo e do mercado financeiro diziam que o Brasil Profundo realizava uma “revolução silenciosa”. Segundo eles, as indústrias e os empregos fechados em São Paulo renasceriam no interior das regiões Nordeste e do Centro-Oeste.
Mas o que estaria realmente em andamento naquele interior longínquo, para além dos discursos ufanistas, sobretudo nas cidades pequenas do centro-sul do país? Uma hipótese foi lançada neste ano pelo escritor e artista plástico Nuno Ramos, em seu novo livro “Fooquedeu (Um Diário)”: “O Brasil profundo saiu dos cafundós, da geologia severa da seca sertaneja, enclidiana, ou dos rios amazônicos, e se instaurou em alguma coisa economicamente rica, estranhamente religiosa, violenta e cara de pau, inoculada em alguma cidade do interior do Paraná, de São Paulo ou do Rio Grande do Sul”.
Para além dessa disputa de narrativas, a fantasia do Brasil Profundo demonstra ter força material e monetária para se impor. Se usarmos um termo da moda, nota-se que o “interior” possui dinheiro necessário e suficiente para fazer a briga pela “hegemonia cultural”. Recentemente, a empresária musical Kamilla Fialho deu um exemplo cristalino de como estão as coisas no mercado da cultura.
Ela contou de sua tentativa de comprar espaços nas emissoras de rádio para artistas de funk. Mas bateu com a cara na porta. Empreendedores do agronegócio estão comprando as estações de rádio, pelo país afora, com o objetivo de tocar apenas e tão somente canções de estilo sertanejo. Nada de funk, MPB, samba ou pagode.
“Tem muito dinheiro, meu amor. Ali é boi. Eu pago para tocar uma música na rádio e eles compram a rádio… Como fica a concorrência? ‘Queria pagar para tocar aí. Ainda existe essa metodologia?’. ‘Não, não, porque o sertanejo passou aqui na semana anterior, comprou a rádio e aqui não toca mais música pop’”, disse Kamilla, que foi empresária da cantora Anitta. É como se os moradores do interior dissessem: agora daremos as cartas do jogo e vamos dizer o que todos devem ouvir e consumir.
Poder real e fictício
Com essas e outras estratégias, o agronegócio vem assumindo o topo do imaginário brasileiro. Tudo agora é “agro”, e este “agro é pop”, como diz o slogan que colocou de vez o interior no centro da narrativa da nação. Ser moderno significa estar ligado ao universo rural que funciona hoje com uma periferia da China para produzir soja e carne. Trata-se de uma operação econômica, política e cultural de grandes proporções para transformar na coisa mais importante um setor que tem uma fração da economia do Brasil.
Os empresários do setor dizem que o agronegócio representa 27,4% do Produto Interno Bruto (PIB), incluído aí as indústrias de alimentos, máquinas agrícolas e fertilizantes. O IBGE é mais pé-no-chão nos cálculos: estima que a agropecuária nas grandes fazendas e pequenas propriedades sejam responsáveis por modestos 5% da produção nacional. Na verdade, segundo o IBGE, o verdadeiro “motor” da economia são os serviços, o comércio nas áreas urbanas, que respondem por 70% do PIB brasileiro.
Cada vez menos é possível sustentar o discurso de que o Brasil Profundo move o país. Pesquisas recentes mostram que o campo não distribui riqueza nas cidades, e nem mesmo é fator de melhoria de bem-estar nos municípios mais dinâmicos. Tampouco tem força para puxar o crescimento do país como um todo. Basta analisar o que ocorreu na pandemia de Covid-19 a partir de 2020. Fato é que, se um algum dia teve essa força, o agronegócio perdeu capacidade de impulsionar a economia brasileira. Porém, o mito se fortalece.
Apesar do poder fictício na economia, o agronegócio ganhou peso político ao longo dos anos. Tempos atrás, o cientista político André Singer identificou a existência de um “Partido do Interior”, que se opõe historicamente à tradição trabalhista de Getúlio Vargas e ao conservadorismo da classe média urbana representada pela antiga UDN (União Democrática Nacional). São os representantes da “alguma coisa economicamente rica, estranhamente religiosa, violenta e cara de pau”, vista por Nuno Ramos.
Ficção interiorana
O mito do país rural também está ganhando novos pilares na produção cultural. Nos últimos meses, reportagens na imprensa descobriram um grupo de escritores e escritoras atuais que localizam seus contos e romances em espaços das pequenas cidades do Brasil. O título de um conteúdo do jornal “O Globo” sintetiza bem o que ocorre em termos mercadológicos: “De volta ao Brasil profundo: editoras apostam em obras de novos autores ambientadas no interior do país”.
As obras citadas pela reportagem foram: “Sismógrafo”, de Leonardo Piana; “Apague a Luz se For Chorar”, de Fabiane Guimarães; “Erva Brava”, de Paulliny Tort; e “Dilúvio das Almas”, de Tito Leite; “O Verão Tardio”, de Luiz Ruffato; “O Ausente”, de Edimilson de Almeida Pereira; e “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior. Ressalte-se que esses livros não fazem apologia da vida interiorana — esta aparece, isto sim, de forma degradada e violentada pela modernização do país e do mundo.
“O retorno ao interior ocorre em um momento em que mais leitores têm se interessado por ficção nacional. Segundo dados da consultoria Nielsen Bookscan, no ano passado, a venda de literatura brasileira aumentou 23,95% e 29,27% em comparação com 2020 e 2019. O número de títulos de ficção nacional publicados cresceu 8,88% e 18,44% em relação aos dois anos anteriores”, diz a reportagem de O Globo, dando a explicação para o interesse renovado pelos assuntos brasileiros.
A onda interiorana parece não ser um acaso dos ficcionistas. Professor universitário, o crítico Luís Augusto Fischer lançou em 2021 a tese polêmica no livro “Duas Formações, Uma História: Das Ideias Fora do Lugar ao Perspectivismo Ameríndio”. Segundo ele, a História da Literatura no Brasil foi construída a partir de interpretação histórica do sistema de “plantation”, tendo proprietários de terra e escravos negros no centro das histórias. Sua proposta é incorporar o “sertão” como um segundo traço da formação brasileira.
Ameaça ao mito
Para Fischer, o eixo formativo do “sertão” está evidentemente em Guimarães Rosa. O da “plantation” encontra tradução em Machado de Assis — o que é um reconhecimento das interpretações clássicas de Antonio Candido e de Roberto Schwarz. O que Fischer sugere em seu livro é a incorporação das análises de Jorge Caldeira ao debate literário. É uma proposta discutível, por sua intenção explícita de demolir os estudos de Caio Prado Jr, mas pode render boas discussões daqui para frente.
Ainda no campo cultural, o cinema fez antes da literatura a “redescoberta” do Brasil Profundo. Mais importante: são trabalhos de teor crítico e, nos melhores casos, com olhar negativo. Basta pensar em “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr; “O Céu de Suely”, de Karim Aïnouz; “Deserto Particular”, de Aly Muritiba; “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro; “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes; “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis; e “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans.
Em suma: pode-se ver uma disputa de narrativas da nação, com telenovelas e canções populares louvando o mundo rural contemporâneo de um lado, e na outra ponta aparecem os romances, contos e filmes que problematizam a vida interiorana.
Nesse debate, uma boa visão está na série recente de reportagens de João Moreira Salles para a revista Piauí. Ao tratar do futuro da Amazônia, ele cita a concorrência sem precedentes da soja produzida na Sibéria (Rússia). Com as mudanças climáticas, grandes áreas congeladas passam a ser agricultáveis e, mais preocupante, estão próximas dos centros consumidores da Europa e China. Assim, é bem possível que o mito do agronegócio brasileiro esteja com os dias e anos contados para acabar.
Mitos como o do Brasil Profundo não devem ser analisados nas chaves de “verdadeiros” ou “falsos”. Ninguém sabe bem como começam. Sabe-se apenas que eles explicam o que as pessoas desconhecem. De tão repetidos, passam a ser crenças. Quando entram para a discussão pública, mais especificamente política, se transformam em ideologia. Um dispositivo ideológico funciona como uma imensa “fantasia social”: posso desconfiar que não seja verdade, mas assim mesmo continuo a acreditar no mito.