O poder de persuasão vale ouro. Por meio dele, pode-se conseguir um bom emprego, que por sua vez serve para que algum dia se chegue a uma promoção justa, um salário que materialize financeiramente essa evolução, uma casa com jardim, uma vida mais confortável. Esse não é o ideal de todo mundo, por óbvio, só das pessoas honestas. Adultos em volta de uma mesa também têm de se valer dessa capacidade de convencer os demais. Entre um e outro lance dos dados, entre a apresentação de uma carta em detrimento de outra, se estabelecem sentimentos tão antagônicos (e complementares) quanto o amor e o ódio, a admiração e a ojeriza, a raiva e a paciência, que por seu turno deságuam em sucesso ou fracasso, e em casos extremos, vida e morte.
O protagonista de “Apostando Tudo” está muito mais inclinado a integrar o segundo grupo, o das pessoas honestas a depender da conveniência. Eddie Garrett está sempre no fio da navalha, presa de um vício que se insinua do jeito mais perigosamente sedutor e ambíguo, ardiloso o bastante para se transformar na desculpa que justificaria qualquer falha de personalidade. Eddie, vivido de forma madura por Jake Johnson, outra parceria com o diretor Joe Swanberg — Johnson já foi protagonista de outros dois trabalhos de Swanberg, “Um Brinde à Amizade” (2013) e “Digging for Fire” (2015) —, é um apostador crônico, patológico, quiçá suicida, que decerto se inebria da falsa impressão de superioridade atingida com o jogo. Como nunca zera suas dívidas, e, claro, passa longe de trabalho, Eddie está eternamente disposto a topar outra roda de carteado no pôquer, mais um giro da roleta, tudo, que ninguém o tenha por mau sujeito, até conseguir a quantia necessária. O problema é que, como toda doença, a compulsão por jogos de azar — e a expressão é muito feliz — não se realiza por si só. Ao longo de uma noite diante de outras pessoas que o desafiam, que o instigam, ainda que sem dizer palavra, a tentar de novo, e de novo, sob o risco da possível negativa soar como covardia imperdoável ou, no mínimo, um atestado de mediocridade, fica difícil saber a hora exata de parar. Sem mencionar o próprio organismo, que sabota o jogador com suas descargas cavalares de hormônios como a adrenalina, relacionada à excitação em situações de perigo, e a endorfina, que a contrabalança e garante o prazer e o conforto do espírito, como se dissesse que ali não mora risco algum. E assim uma verdadeira fortuna vira fumaça.
Eddie parece não ter mesmo jeito. Jackson consegue transmitir ao espectador a tendência do filme de Swanberg tratar seu personagem como um menino crescido e ainda birrento em vez de tomá-lo como o homem que de fato é. E, ao que parece, o problema vem de longe: quando a situação saía de controle, Eddie empenhava mais do que poderia honrar e algum credor mais exaltado oferecia uma boa recompensa por sua cabeça, o malandro se defendia junto ao irmão mais velho Ron, papel de Joe Lo Truglio, e desta vez é ele quem dá a cartada final. Depois de gastar dois mil dólares que não eram seus, Eddie recorre, como de hábito ao irmão, que o socorre, mas com o dinheiro fácil que o desditoso jogador esperava. Se quiser receber algum das mãos de Ron, Eddie vai ter de aceitar o emprego que o irmão lhe oferece na empresa de jardinagem que toca com sacrifício, trabalhando duro, como os outros.
Aqueles dois mil dólares, motivo da redenção e da desgraça contínua de Eddie, pertencem a ninguém menos que Michael, o gângster interpretado por José Antonio García, que os confiou ao personagem de Jackson misturados a uma porção de objetos suspeitos, como uma marreta, dentro de uma bolsa. Se o conhecesse direito, Michael saberia que Eddie, não resistiria a dar uma olhada no interior da bolsa, e em achando tanto dinheiro disponível, daria à bolada o destino que julga o mais inteligente; ou, quem sabe, Michael soubesse o que estava fazendo e o procurara ou para testá-lo ou justamente porque pudesse ter com ele alguma desavença que demandava reparação e esse fora o meio de racionalizar a vendeta. Tudo isso são meras conjecturas de minha parte; o roteiro de Johnson e Swanberg não se detém no episódio, cometendo a falta mais grave que poderia do ponto de vista narrativo. Destarte, principal evento de “Apostando Tudo” passa ao largo, deixando o público à deriva na história. Para ser justo, se faz menção a uma temporada de Michael na cadeia, por alguns dias, mas desde quando alguém fica na cadeia apenas por alguns dias, e tanto pior se alguém perigoso como o enredo do filme quer fazer da figura de Michael? A sequência é encerrada com a lembrança de que, se a bolsa for devolvida intacta, ou seja, com os cinquenta mil dólares ali guardados, Eddie poderá ficar com dez mil. Como já se sabe, isso não será mais possível, uma vez que agora são 48 mil. O compromisso do prêmio foi, provavelmente, o gatilho disparado pela mente perturbada de Eddie, que, como todo psicopata, precisa de uma muleta retórica para explicar sua debilidade moral.
A partir desse ponto, “Apostando Tudo” vira a chave, bem como seu protagonista. Ao mesmo tempo que a sucessão de apostas com dinheiro alheio sai do controle — de quando em quando, números surgem na tela, mostrando em quanto Eddie está no lucro e o quanto ainda deve —, e de dois mil seu débito salta para mais de 21 mil dólares, num único movimento, a vida vai se incumbindo de lhe mostrar, com a sutileza que ele não faz por merecer, motivos para se emendar. Ao cabo de uma noite proveitosa, em que ganhou mais que perdeu, promove uma sessão de bebedeira com os amigos. Nessa ocasião, conhece Eva, a enfermeira cheia de conflitos pessoais interpretada por Aislinn Derbez. Criando sozinha a filha, Eva mora com a mãe — outra vez não se sabe por que, nem mesmo a quem pertence a casa — e é excessivamente zelosa quanto a assumir um relacionamento, até um tanto paranoica. Como se trata de cinema (e talvez o orçamento não fosse suficiente quanto a desenvolver e encerrar mais esse arco), Eva não se furta a passar por cima de suas convicções, seduzida por um Eddie cada vez mais encantador. Sem deixar o emprego nem o expediente no clube de apostas que frequenta abnegadamente, o romance entre Eva e o protagonista ganha espaço na trama, e entre um encontro furtivo e outro, sempre em lugares públicos, porque a enfermeira não pode — e no fundo não quer receber o namorado em casa —, emerge a figura de Gene, a única coisa realmente louvável do filme. O personagem de Keegan-Michael Key, padrinho de Eddie nos Jogadores Anônimos, a cujas reuniões comparece quando quer, lhe dá o conselho que quase o mata e tendo apenas as sequências finais do longa por parâmetro, não se pode afirmar com certeza se Eddie juntou ou não o dinheiro que precisava a fim de liquidar a dívida com Michael, sem que o bandidão nem tenha ficado sabendo.
A miséria da vida de mentira de Eddie vem à lume nessas cenas colaterais, em que sua marginalidade é exposta graças a outros personagens. Ainda que Key — é pena que apareça tão pouco —, Johnson, Lo Truglio e Derbez, do melhor para o menos brilhante, façam a parte que lhes cabe, “Apostando Tudo” é uma sucessão de erros, maiores ou menores. O desfecho, que cada um imagina como melhor lhe convém, é a prova de que bons diretores não são necessariamente roteiristas sequer medianos, o mesmo valendo para o protagonista, que tira leite de pedra a fim de dar alguma alma ao trabalho de Joe Swanberg. Ao fim da história, ficamos como Eddie, completamente deslocado, só, ainda que cheio de gente ao seu redor. Pode ser até que tenha perdido tudo, e de propósito. Só assim o filme poderia ser alvo de abordagem mais condescendente.
Filme: Apostando Tudo
Direção: Joe Swanberg
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 7/10