Novo filme argentino da Netflix vai derreter seu coração Divulgação / Netflix

Novo filme argentino da Netflix vai derreter seu coração

Desde “Hamlet”, a relação entre pais e filhos — entre um pai e um filho, mais precisamente — é alvo do interesse de quem escreve histórias e de quem as acompanha. Nascido da pena inigualável de William Shakespeare (1564-1616), o drama de família mais famoso da história traz à superfície, a despeito do glacê sobre as agonias de se manter ou não o poder num ambiente de profunda corrupção moral, as dores de dois homens que se amam embora nem sempre se entendam, mas que têm a possibilidade de aparar suas arestas extinta definitivamente por causa dos delírios megalomaníacos de um terceiro homem. Machado de Assis (1839-1908) preferiu não ter tido filhos, não só para evitar transmitir a quem quer fosse o legado de nossa miséria, como também para não correr o risco de se revirar na cova, consumido pela mágoa ao constatar que um provável herdeiro estaria fazendo uso, digamos, um tanto heterodoxo demais de sua obra.

Ariel Winograd não é Shakespeare nem Machado, mas também sabe contar histórias, inclusive essas, arrevesadas, de pai e filho. O protagonista de “Vamos Consertar o Mundo” também não está muito interessado em ter filhos. O problema é que ele já tem. David Samarás, do sempre admirável Leonardo Sbaraglia, leva uma vida meio besta, casado com a carreira de diretor de um programa meio mundo cão meio humorístico, sem tempo para muito mais, na emissora dirigida por Cosentino, de Martín Piroyansky, o novo dono desde que o pai morreu. “Vamos Consertar o Mundo”, o programa, já está na sétima temporada e a luz amarela já foi acendida: é preciso desapegar, como diz Cosentino. Entre uma e outra indireta, David continua fazendo seu trabalho, e vivendo, muito satisfeito em dirigir episódios em que um pai açougueiro e uma filha vegana já não suportam mais ter de brigar e defender suas respectivas visões de mundo a toda hora; duas irmãs gêmeas se digladiam pela tutela da cachorrinha Caquita; e um grupo de vizinhos apela à produção para que consigam extrair a senha do wi-fi de um aposentado por meio de hipnose. No meio desse turbilhão de situações absurdas, reais ou não, o personagem de Sbaraglia topa com Benito, o filho que teve com Silvina Lasarte, de Natalia Oreiro.

É justamente sobre Benito, o Beni, que David e Silvina falam na última vez em que se encontram, no restaurante japonês onde o diretor come de graça. A revelação que ele ouve da personagem de Oreiro, o faz retroceder nove anos, quando beni ainda não existia, mas sua vida era igualmente oca. O aparecimento do menino, vivido por Benjamín Otero, a grande revelação do filme, não teve o poder de mudar nada em sua rotina, em seu modo de se portar no mundo, em seu modo de conduzir seus poucos relacionamentos, em como administra seus raros afetos. Talvez por ter sempre alimentado a suspeita que Silvina fez questão de reforçar, desaparecendo de vez logo em seguida. David dirime cientificamente as hesitações que têm quanto a Beni dias depois valendo-se de um ardil meio covarde, e agora só lhe resta ir à cata do menino e despejar-lhe a verdade em cima, livrando-se desse fardo afinal. Mas as coisas não correm tão fáceis assim, principalmente por causa do pedido que o garoto lhe faz. Ele sabe que não é o sujeito mais apropriado para a tarefa, sente que deve se empenhar pela manutenção de “Vamos Consertar o Mundo” na programação do canal, mas entende, com a exígua sensibilidade de que é dotado, que tem de fazer alguma coisa por Beni.

Winograd passa a narrar a história sob a perspectiva do personagem de Otero, doravante o mais importante no roteiro de Mariano Veras. Otero e Sbaraglia compõem uma aliança que só joga “Vamos Consertar o Mundo” ainda mais para cima, e os dois partem numa verdadeira odisseia em busca do terceiro elemento capaz de fechar esse arco. Contando com a ajuda de Yanina, ou simplesmente Yaní, a divertida coach de Beni e amiga de Silvina interpretada por Charo López, David se esmera em tentar preencher as lacunas do passado de Beni. Paradoxalmente cada vez mais unidos, o garoto e Griego, apelido que Beni passa a usar ao se referir a David, protagonizam situações tão pouco críveis quanto as levadas ao ar pelo programa do tipo vivido por Sbaraglia. A passagem pela Cidade das Crianças, o grande parque de diversões nos arredores de Buenos Aires, dá ao filme o aspecto de conto de fadas que faltava para que o longa seja mesmo encarado à luz de uma história de descobertas, de magia, despertada por uma criança. Essa criança transforma o adulto indiferente que fazia parte de sua vida apenas em caráter oficial; uma vez que se finda toda a artificialidade dos papéis e das certidões, Beni e seu pai, David, estão prontos para entrar na vida um do outro. Mesmo que, agora, se conheça a verdade sobre a origem do menino.

Essa guinada quase tardia é o que deixa o filme de Winograd tão original. Ao dispor de uma dupla de atores de raro talento, separados por duas gerações, o diretor se encontra para propor tratamentos inusitados ao texto de Veras, que prima pela boa distribuição de comédia e drama no transcorrer do enredo. Parábola repleta de lirismo sobre um pai sem filho e um filho sem pai, “Vamos Consertar o Mundo” não carrega nas tintas em momento algum, sem deixar de lançar verdades sobre o que é, de fato, uma família.


Filme: Vamos Consertar o Mundo
Direção: Ariel Winograd
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.