Tom Ford começou bem no cinema. O estilista, um dos mais bem-sucedidos da competitiva indústria da moda, desvendou rápido os segredos para se fazer um bom filme. Sua estreia em 2009, com “Direito de Amar”, sobre um professor universitário que acorda todos os dias religiosamente à mesma hora, se arruma com todo o esmero para ir trabalhar, mas só pensa em meios de como dar cabo da própria vida por não conseguir superar a morte do companheiro, foi sensação no mundo todo, não exatamente por ele, um homem muito rico, ter sido capaz de lustrar sua história com toda sorte de refinamentos, a começar, claro, dos figurinos irrepreensíveis. Vencedor do prêmio de Melhor Filme da AFI, o Instituto Americano de Cinema, entidade que laureia produções realizadas nos Estados Unidos, “Direito de Amar” foi o batismo de sangue que admitiu Ford nesse mundinho abafado dos diretores de cinema americanos, e ele tomou gosto pela coisa. Sete anos depois, em 2016, o agora cineasta estreava “Animais Noturnos” com a mesma pompa, a mesma classe, e foi capaz de superar as expectativas que critica e público, nessa ordem, passaram a ter a seu respeito.
Não se pode definir o que é “Animais Noturnos” com duas três palavras. Não é ruim, não é excepcional, para ficar num comentário inicial bastante lacônico, contudo é decerto um dos longas mais instigantes já levados à tela até aquele momento, quase tudo saído da cabeça mirabolantemente inventiva de Ford, criador por excelência, cujo roteiro contou com a colaboração de Austin Wright. Se ainda há quem diga que, no caso de “Direito de Amar”, o grande responsável por modernizar a centenária grife italiana Gucci foi mais um mecenas que um realizador de fato, dispondo de um exército de roteiristas e aspirantes a diretores habilidosos, ávidos por uma oportunidade (e por uma remuneração generosa), aqui se pode sentir a presença do espírito sensível de Ford falar mais alto. “Animais Noturnos” transcende a natureza de mais um trabalho de um diretor aplicadamente à procura de identidade e se impõe como verdadeira obra de arte. Os problemas começam quando, por alguma razão, o diretor julga que contar uma boa história não é o bastante e dá início à outra busca, a do protesto. Ford passa então a emendar um panfleto no outro, e é precisamente aí que seu filme perde potência.
Certamente existe muita gente que se escandalize com as imagens introdutórias de “Animais Noturnos”, de corpos femininos nus porque, e isso é o que importa, não seguem os padrões ditados pela publicidade e, por evidente, pela moda — é curioso se fazer tal observação no filme de alguém que se tornou celebre (e milionário) por desenhar roupas para mulheres macérrimas, expostas em corpos de modelos esquálidas. Essas afrodites roliças se cobrem com bandeiras de grupos de líderes de torcida, agitam pompons e seguram estrelas que acendem, espetáculo ainda mais bizarro porque Ford opta por fazer esse registro em câmera lenta, como se disposto a, além de chocar suscetibilidades hipócritas, torturar os que aguardam pelo efetivo desenrolar da trama. Conforme se vai assistir mais adiante, essa afronta diegética tem função prática no enredo, quiçá mesmo reveladora, uma vez que não só fornece pistas sobre determinada personagem, como ajuda a que se compreenda o que exatamente Ford quer dizer com tamanha blasfêmia.
As cheerleaders são as estrelas da exposição de arte conceitual de Susan, uma galerista e marchande famosa no mundo da arte alternativa de Los Angeles. O estilo de vida de Susan, vivida por uma Amy Adams que nunca deixa que nada sobre ou falte, é excêntrico, como o da maior parte das pessoas que orbitam o seu universo, sustentado pelo marido, Hutton, de Armie Hammer. Logo se pode inferir que toda a ostentação que a cerca é só uma camuflagem para tirar o foco de sua indigência existencial, motivada também pelo casamento, que ja deveria ter acabado, mas se arrasta ad aeternum, uma vez que ela teme perder o status de grande dama da sociedade americana e ser alijada das altas rodas, pródigas de gente preconceituosa e vazia. Essa breve resenha de Ford sobre a personagem de Adams se fecha com a chegada de um embrulho contendo a redação do livro ainda inédito de Edward Sheffield, seu primeiro marido, interpretado por Jake Gyllenhaal, versátil como sempre. O pacote e o bilhete escrito por Sheffield deixam-na transtornada, a ponto de, num ímpeto, ela se consultar com uma funcionária sobre em que medida nossas escolhas nos definem, para o bem o para o mal, de tal modo que seja impossível qualquer retorno. Como se poderia suspeitar, Susan não ouve sua resposta de um milhão de dólares.
O filme passa a ser conduzido de forma a dar a impressão de um sonho longo e exaustivo, numa realidade paralela em que Tony Hastings, pai de família cujo requinte é motivo de admiração, parte em viagem pelo Texas com a mulher, Laura, de Isla Fisher, e filha, misto de rebeldia e doçura como quase todo adolescente, tipo defendido com empenho por Ellie Bamber. Durante o deslocamento, de carro, Hastings, também vivido por Gyllenhaal, tem o carro fechado por Ray, de Aaron Taylor-Johnson, até que os dois veículos saiam da estrada. Fica implícita após a sequência, uma das mais impactantes num filme de suspense, que talvez tudo não passe mesmo de um delírio de Susan, tão impressionada ficou com o texto de Sheffield. Também está claro que a relação dos dois deixou pontas soltas que talvez tenham de amarrar imediatamente.
Subtramas envolvendo Susan e Sheffield, amantes cujo sentimento romântico permanece, a contragosto dos dois, vem à lume, inclusive remontando a um passado que pensavam extinto, mas que volta com toda a carga. Manejando com segurança discussões sobre o valor da arte, cujo significado soa cada vez mais diáfano, e o quanto as frágeis emoções humanas interferem no processo criativo do artista, Tom Ford tece um verdadeiro estudo acerca da flexibilização da estética, ou seja, do que vem a ser (ou não) bonito, e por conseguinte, do que vem a ser (ou não) arte — e ele sabe do que está falando. Tanto sabe que exige que também o espectador se questione, sem necessariamente alcançar conclusões inamovíveis, o que dá azo a outras teorias. A arte tem mesmo uma função? A arte deve ter alguma função? A resposta é óbvia: a verdadeira arte é a função por si só.
Filme: Animais Noturnos
Direção: Tom Ford
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 8/10
Onde assistir: Amazon Prime Video