O público pode até repelir filmes que mostram realidades duras demais, mas uma vez tendo começado a assistir a uma história assim, se não permanece até o final, a culpa não é dele. Pode ser do diretor, que pesou muito a mão; dos atores, que porventura não entenderam a proposta; ou da própria narrativa, que de tão caudalosa, se enrosca em si mesma e se perde. Como explicar o sucesso de filmes como “A Teoria de Tudo” (2014), dirigido por James Marsh, sobre um físico na flor da idade que mantém o brilho do intelecto, enquanto defina aos poucos, ou “O Som do Silêncio” (2020), de Darius Marder, que descreve a luta de um baterista contra uma surdez que avança a galope? Dosar o teor de drama, de modo a não permitir que a trama pareça inconsequente, sem deixá-la se transformar numa ode ao fim do mundo, injustificadamente fatalista e por conseguinte pouco verossímil, é uma equação complexa, cuja resolução demanda sensibilidade. Passar por cima do bom senso em nome da emoção não se prova uma boa ideia.
Daí se admitir o fenômeno por trás de “100 Metros”, em que o diretor espanhol Marcel Barrena transforma a esclerose múltipla do protagonista na própria personagem mais importante do filme de 2016. Coestrelando o longa de Barrena, Dani Rovira é um intérprete sagaz o bastante para compreender os momentos voltados integralmente a Ramón Arroyo e as passagens em que admiti-lo como um homem comum, cuja saúde encontra-se em perfeito estado e que não se esfacela devido a uma enfermidade que o consome gradual, silenciosa e constantemente não faz sentido. Tomando a morte nos braços numa dança em que calcula cada passo diligentemente ou correndo contra o relógio, para assumir o trocadilho, Rovira, amparando-se no roteiro preciso de Barrena, capta a essência do protagonista, alvejado de súbito, sem que esperasse — como todo mundo, aliás —, por uma doença que o empurra para o lugar mais baixo e mais obscuro de si mesmo. A partir do diagnóstico, se configura para Arroyo o desafio de viver com a nova limitação e inverter outra vez os papéis. Se para o personagem de Rovira, a esclerose parecia ganhar uma centralidade que não merece, é chegada a hora de reaver sua vida e seguir com os planos de concluir o Ironman, uma das competições esportivas mais famosas (e exaustivas) do mundo.
A adaptação de histórias que aconteceram mesmo fomenta dificuldades próprias, e “100 Metros” cumpre a missão de reportar como passou a ser a vida de Ramon Arroyo depois de se saber portador de uma doença capaz de matá-lo em alguns meses, mas que não tinha força suficiente para fazê-lo abdicar de seu sonho. Malgrado resvale aqui e ali em abordagens maniqueístas — como facultar a Arroyo a condição de um herói que suplanta uma dificuldade que poderia aniquilá-lo de saída, mesmo podendo dispor da ajuda fundamental de Inma, a esposa vivida por Alexandra Jiménez —, Barrena faz desculpáveis esses pequenos clichês menores ao descobrir brechas por onde conduzir a trama de modo a soar menos óbvia. A parceria entre Rovira e Jiménez é um dos pontos altos do que é contado, mas decerto o vínculo que o protagonista estabelece com outro personagem é o que confere a “100 Metros” o status de um grande filme. A relação empática entre Arroyo e seu sogro Manolo se espraia ao longo de tantos momentos que é como se o trabalho de Barrena se constituísse de dois longas em um, o primeiro sendo uma mera apresentação da vida do personagem central ate aquele instante e o segundo, mais cheio de nuances, de detalhes, de ritmo, sua história a partir do momento em que a esclerose se lhe descortina e uma amizade um tanto improvável se torna o alicerce para que atinja a meta que estabelecera e, o mais importante, não sucumba à doença. O convívio com Manolo, de Karra Elejalde, performance tão dotada de intensidade dramática e precisão técnica quanto a de Rovira, mostra-se como um outro casamento, também pleno de altos e baixos, em que um sente ganas de trucidar o outro, mas em que ambos têm convicção de que não podem simplesmente abandonar o navio e remar sozinho. Amadurecido esse núcleo, chega a hora do público conhecer um pouco mais sobre Manolo, personagem que não existe na biografia de Ramon Arroyo, mas que além de oferecer o respiro cômico do filme, também tem sua face oculta. Vítima de uma depressão severa motivada por uma perda, o personagem de Elejalde se desintegra a olhos vistos e da maneira mais crua, o que exige a intervenção de Arroyo, que não quer que Manolo descubra que ele sabe o que está havendo. Para garantir o verdadeiro conflito da trama, essa verdade vem à superfície e algo entre os dois se parte entre o protagonista e seu (s)ogro.
Cineasta de produções um tanto bissextas, mas sempre assertivas, o diretor chega a seu objetivo, qual seja, mostrar se Ramon Arroyo alcança ou não sua meta, sem se permitir descuidar de todo o processo que conduz a esse desfecho, tão rico quanto o resultado final. Em sua estreia num trabalho de maior envergadura, Marcel Barrena se prepara para dar a largada rumo a uma carreira sólida, em que poderá desenvolver com o mesmo esmero novas histórias e personagens, como o fez em “100 Metros”, que em mãos menos escrupulosas certamente teria se tornado uma xaropada enjoativa e intragável.
Filme: 100 Metros
Direção: Marcel Barrena
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 9/10