McComb, Mississipi, 1961. Um homem branco é arrastado por outros homens brancos, submetido a uma série de ultrajes, colocado na ponta de uma corda, à guisa de forca, amarrada a um carro na outra extremidade. Há momentos de comoção, de revolta talvez, quanto ao que está se passando, mas ninguém toma uma atitude. O carro dá a partida. O homem que estava preso à corda é puxado de rastos.
Já na sequência inicial de “Filhos do Ódio” (2020), Barry Alexander Brown dá um golpe certeiro no público. Valendo-se da velha máxima de Hitchcock, Brown deixa patente para quem assiste a seu filme que há uma bomba de vasto poder de destruição na história, só não se sabe o momento exato em que ela será detonada. O roteiro do diretor, inspirado na autobiografia “The Wrong Side of Murder Creek: A White Southerner in the Freedom Movement” (2008, sem edição em português), do ativista John Robert Zellner, sai da analepse e corta para a narrativa em tempo fluido, registrando o dia a dia de Bob, um garoto caucasiano, como se dizia à época, nascido no Alabama, 22 anos, estudante universitário, prestes a se casar. Por que alguém como Zellner colocaria em risco uma vida tão tranquila para tomar parte numa guerra que não é sua?
A iminência da formatura no Huntingdon College, em Montgomery, capital do Alabama, é o gatilho para que o protagonista, vivido por um Lucas Till atento e carismático, mude sua vida para sempre. Muito mais sensível e consciente das mudanças socioculturais pelas quais os Estados Unidos apenas começam a passar, Bob precisa de uma entrevista com o reverendo Ralph Abernathy (1926-1990) e Rosa Parks (1913-2005) para fechar seu trabalho de conclusão de curso. O objeto de seu estudo, as tensas relações raciais na América a partir de meados dos anos 1950, estão na ordem do dia, e ninguém melhor que os personagens de Cedric the Entertainer e Sharonne Lanier para esclarecer certos pontos ainda hoje obscuros acerca do convívio entre brancos e negros, compulsório e marcado por ataques de parte a parte. Abernathy e Parks enxergam na ousadia algo perigosa do garoto uma chance de rememorar o boicote às empresas de ônibus de Montgomery, em 1956, e a marcha de ativistas negros até Washington que se seguiu ao protesto, onde se encontraram com Martin Luther King Jr. (1929-1968), e repisar as velhas demandas por igualdade de direitos, dignidade e uma legislação que contemple tais reivindicações. Abernathy, Parks e, claro, Martin Luther King compuseram o tripé da luta por cidadania para a população afro-americana, mas Parks tem participação ainda mais curiosa no fenômeno. Depois de um dia de trabalho, a costureira se recusou a ceder seu assento a um homem branco, não exatamente por consciência social, como revelou depois, mas por estar cansada mesmo. O caso, por evidente, foi parar na polícia e o tiro saiu pela culatra: o absurdo do que acontecera naquele ônibus passadas mais de seis décadas ganhou as páginas dos mais influentes jornais do mundo, e a publicidade espontânea gerada, a contragosto, pela atuação do aparato armado do Estado jogou a calha d’água que faltava no moinho do combate ao racismo institucional e à hipocrisia do modo como o tema era tratado, inclusive pelas autoridades.
O encontro de Bob com Abernathy e Parks, num templo protestante reservado apenas para negros, quase termina em cadeia para o personagem de Till, que fica ainda mais convicto quanto a se engajar no movimento. Filho de James Zellner, o pastor metodista interpretado por Byron Herlong, o rapaz acreditava que Deus abençoava a todos por igual, sem a necessidade de que os homens se segregassem entre si mesmo em seus momentos de louvor a Deus e não via sentido em estar sob ameaça constante precisamente por entender que todos somos iguais aos olhos Dele. Como na falha justiça da Terra é o homem quem manda, a sombra do cárcere e do degredo de sua cidade está sempre a pairar sobre sua cabeça. É o momento de romper o noivado com Carol Anne, a racista empedernida de Lucy Hale, e dar um rumo verdadeiramente novo a sua vida.
Neto de um pioneiro da Ku Klux Klan, personagem sobre o qual o veterano Brian Dennehy (1938-2020) soube imprimir tintas impressionantemente assustadoras pela sutileza dos gestos — mas não das palavras —, Bob Zellner poderia ser o típico mocinho que toma ares de vilão em dois tempos, tamanho o estigma que carrega, mas Brown soube contorná-los todos, inclusive o maior deles. A tentação de tentar vender Bob como o salvador branco que se imola pelos irmãos de cor (outra terminologia datada, esta politicamente incorreta na origem) passa longe dos planos do cineasta, que aproveita o mote para a discussão messiânica com sagacidade. O próprio Zellner em sua autobiografia registra passagens saborosas a esse respeito, como quando Carol Anne o encurrala e aponta sua possível megalomania, que o empurrava para um pecado mortal: o de querer emular Deus. Mais à frente, num diálogo que tende para o exasperado com James Forman (1928-2005), membro do alto escalão do SNCC, o comitê que organiza movimentos de resistência a ações racistas pautados pela não-violência, Bob sugere que sua militância pode ser alvo de estranhamento pela mesma razão que negros veem em se rebelar contra um sistema que os oprime só por causa da cor da pele, ou seja, que ele, por ser um democrata, por acreditar que cidadãos negros e honestos devem poder contar com os mesmos direitos e cumprir os mesmos deveres, a despeito da cor da pele, não porque Deus os constituiu de razão e livre arbítrio como aos outros, mas porque a vida em sociedade só faz sentido dessa forma, não nem melhor nem pior que ninguém. É um indivíduo, sem cor que o precise definir. Esse é o ponto.
Batendo à máquina tudo quanto Bob diz, como nos interrogatórios a que a polícia sujeita cidadãos não-brancos por qualquer razão — hoje é diferente: há os computadores —, Forman, encarnado por seu filho do meio, Chaka, enxerga sinceridade no discurso daquele garoto branco e algo atrevido, mas claro que nem todos o encarariam com tanta boa vontade, muito menos de imediato. É o caso de Reggie, o militante mais exaltado do SNCC, papel de Shamier Anderson. Brown aproveita a tensão entre os dois personagens, aparentemente a antítese um do outro, para repisar tudo quanto disse até aqui. Desconfiando abertamente das intenções de Bob — que, na paranoia que seu medo desencadeia, pode ser um agente do FBI —, Reggie submete o novato a verdadeiras provações, suportadas com toda a fleuma. A simpatia mútua de Joanne, a dama negra, culta e refinada, de Lex Scott Davis, por Bob é vista por mero oportunismo de ambos: ele a estaria usando para se infiltrar no grupo, ao passo que ela, tentando se aproximar do estudante, quereria ascender socialmente e “depurar” sua negritude (que, no fundo, consideraria incompatível com sua condição de professora universitária) gerando filhos mestiços, alvos de pele, se o destino ajudasse. Como se assiste, Reggie — roubando todas as cenas e exibindo um desempenho como antagonista ocasional muito mais sedutor que o mocinho Bob, linear e previsível até a medula e por quase todo o filme (a sequência em que afronta o ex-amigo Doc, de Jake Abel, é a honrosa exceção) —, está em duplo equívoco. Mas Bob e Joanne estavam, sim, apaixonados.
Ex-editor de Spike Lee, Brown se reafirma como um excelente contador de histórias, sem prejuízo de questões técnicas. A princípio pouco inventivas, as cenas do introito, que se prestam a alicerce de todo o enredo, são resolvidas de uma maneira muito orgânica, sendo possível à audiência visualizar um ciclo que se fecha. O diretor também é hábil em tornar o ramerrão caipira sobre uma possível tomada de poder pelos commies, os comunistas, que de acordo com um dos algozes de Bob, já perto do desfecho, são todos judeus e nascidos em Nova York, uma cidade onde nunca há de botar os pés, como ele. Bob é do Alabama e metodista, e mesmo com esse péssimo histórico para um simpatizante da causa negra, parece conseguir se livrar, em alguma medida, da pecha de traidor de sua raça. Não adianta. Sempre hão de lhe arrumar algum outro epíteto, a fim de diminuí-lo e calar-lhe a voz. Qualquer semelhança com o Brasil de 2022 não é mera coincidência.
Mesclando elementos do melodrama com pesquisa histórica irretocável, Barry Alexander Brown faz de seu filme uma história de rara originalidade, na embalagem e na essência. Quase tão bom quanto outras produções do gênero, a exemplo de “Se a Rua Beale Falasse” (2018), dirigido por Barry Jenkins, e “Infiltrado na Klan” (2018), do próprio Spike Lee, “Filhos do Ódio” é mais uma prova de que o cinema cabeça às vezes chega ao coração das massas. À custa de uma ou outra cafonice, é verdade.
Filme: Filhos do Ódio
Direção: Barry Alexander Brown
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Biografia/Coming-of-age
Nota: 9/10