Robert Aickman, o lendário renovador da literatura de vampiros é, finalmente, publicado no Brasil Ida Kar / National Portrait Gallery

Robert Aickman, o lendário renovador da literatura de vampiros é, finalmente, publicado no Brasil

A publicação de “Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas”, do escritor inglês Robert Aickman, é ao mesmo tempo um presente e um alerta para a pequena confraria de leitores brasileiros. Um presente porque a intrigante literatura de Aickman permanecia praticamente inédita no Brasil. Era coisa de iniciados, com pouquíssimas referências disponíveis. Seu nome circulava de boca em boca, quase como se fosse um código secreto, sobretudo entre os aficionados nos gêneros de terror sobrenatural e ficção especulativa. Uma fatia muito específica e superespecializada da já diminuta confraria de leitores patropis. Fora dessa bolha, alguns o conheciam de “ouvir falar” de suas 48 “histórias estranhas” publicadas em oito volumes.

Repique-Macabro
Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas, de Robert Aickman (Ex Machina / Clepsidra, 288 páginas)

Por tudo isso, finalmente ter no mercado brasileiro uma boa seleção de seus trabalhos, editados com esmero e competência, é algo para ser comemorado. Esse livro prova que o talento de Robert Aickman vai muito além de rótulos literários e precisa ser conhecido por todos os apreciadores da boa literatura, independentemente de filiações estéticas imediatas. Assim como ocorreu com Edgar Allan Poe, que ultrapassou a condição de escritor de terror e suspense, conquistando status de autor canônico. As “histórias estranhas”, como o próprio Aickman definia suas narrativas, possuem o mesmo apelo universal das “histórias extraordinárias” de Poe. Os dois autores usam o medo, o oculto, desejos reprimidos, violência simbólica, clichês da literatura gótica ou mesmo a tradição folclórica europeia para refletir sobre a condição humana.

E justamente por toda essa excelência estética ter permanecida escondida durante tanto tempo que fica constituído o alerta. Por que demorou tanto? O quase desconhecimento de Robert Aickman no Brasil denúncia o quanto nosso mercado editorial está defasado e incompleto. Quantos outros autores do mesmo quilate ainda não foram devidamente editados no país? Podemos contar com os grandes conglomerados editoriais para realizar esse trabalha? No caso de Robert Aickman, não podemos. O caminho percorrido por “Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas” foi diverso. Literalmente, resultou de um esforço conjunto. Sua publicação foi viabilizada via financiamento coletivo na plataforma Catarse, em um projeto apresentado por duas editoras pequenas de São Paulo, a Ex Machina e a Sebo Clepsidra.

Não se trata de nenhuma surpresa. Quem acompanha o calendário de lançamentos sabe que não raramente as melhores novidades são apresentadas por editoras médias, pequenas ou, em situações excepcionais, até mesmo amadoras. No caso de Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas, trata-se de um trabalho de excelência. Desde a curadoria dos nove contos escolhidos, passando pelo projeto gráfico e chegando na cuidadosa tradução; feita por quatro profissionais: Alcebiades Diniz, Bruno Costa, Oscar Nestarez e Ronaldo Gomes. Merece destaque a uniformidade de estilo conseguido entre textos traduzidos por diferentes pessoas, certamente resultado de cuidadoso cotejamento e preparação editorial. Ninguém duvidaria que a tradução foi realizada por uma única cabeça. O estilo elegante, onírico, levemente sarcástico e repleto de referências culturais de Aickman foi preservado à perfeição.

Segundo o escritor Neil Gaiman, “ler Aickman é como assistir à apresentação de um mágico, e muitas vezes nem sei qual foi o truque que ele usou. Sei apenas que ele o fez de modo brilhante. Ele é realmente o melhor”. Excetuando-se o exagero no final (como assim “o melhor”?) essa definição é muito acertada. O estilo de Aickman realmente se assemelha a um espetáculo de mágica. Sabemos que o artista está desviando nossa atenção para alguma coisa menos importante com uma mão, enquanto prepara uma surpresa com a outra, numa dinâmica de ocultar, revelar, ocultar. Saímos sem certezas, mas encantados de contos como “As espadas”, “Bosque adentro” e “O mar cor de vinho”.

Outro bom exemplo é justamente o conto título, “Repique macabro”. Olhando superficialmente é uma história clássica de zumbis à inglesa. Temos a cidade pequena e estranha, temos os visitantes desavisados, temos as ruas vazias, temos a atividade religiosa macabra, temos a hora do chá, temos os cidadãos amedrontados e cheios de revelações duvidosas, temos as hordas de “mortos vivos” vagando pelas ruas, temos o suspense que antecede o ataque final, temos o “deus ex machina” salvador. Todo o repertório foi listado. Contudo, nada é tão simples.

Robert Aickman
Robert Aickman

 “Repique macabro” conta a história de um casal recém-casado que vai passar a lua de mel em uma pequena cidade praieira chamada Holihaven. O simbolismo no nome da localidade é evidente e revela um recurso recorrente em Aickman, o de usar nomes que sugerem sentidos ocultos nas entrelinhas da narrativa. O casal, formado por uma mulher bela e jovem e um homem mais velho, parece disfuncional desde o princípio. Mas, naquele momento, declaram que só desejam paz, aconchego e ver o mar. Quando desembarcam na estação de trem da cidade, percebem que diversos sinos, de diversas igrejas, repicam incessantemente, e em crescente. Esse repique macabro é revelado, por uma estranha figura que encontram no hotel, como parte de um ritual de despertar dos mortos. O sujeito, obviamente, recomenda ao protagonista que tire sua jovem esposa de Holihaven enquanto é tempo. Inicialmente, como qualquer pessoa de bom senso faria, o homem acha a sugestão absurda, até ridícula. É um indivíduo culto e racional. Logo na primeira página do conto cita Bertrand Russell.

Mas é justamente aqui que Aickman começa seu jogo, sua mágica, com o leitor. Não há leitura de Bertrand Russell que resista à força de sugestão da atmosfera de uma cidade estranha tomada por um insuportável barulho de sinos. Pouco a pouco, a partir de pequenos detalhes que se acumulam, o inicialmente risível alerta, ganha tons de seriedade. Passa a ser considerado como vital. Um clima tenso toma conta do texto e, quando chega no auge, é desmontado por outro personagem, que recoloca o alerta na condição de absurdo criado por uma mente perturbada. O protagonista e o leitor relaxa. Mas esse alívio não dura mais do que algumas poucas linhas. Novos pequenos incidentes sugerem que o tal “ritual de despertar dos mortos” pode estar mesmo acontecendo. Mas agora é tarde demais para ir embora. As ruas, se tornaram perigosas, de um jeito ou de outro. O que fazer? Se recolher, é claro. Se trancar no quarto, cobrir a cabeça com o cobertor e esperar o amanhecer para ir embora. Porém, quando as badaladas dos sinos param, o pânico começa.

O final do conto é catártico. Acorrem cenas de violência até então impensáveis para o tipo de narrativa que se seguia. De um conto que privilegiava a construção de atmosfera passa a descrever momentos dignos de César Romero. O que de fato aconteceu? Aickman dá poucas certezas. Uma turba de fanáticos ensandecidos pode ser confundida com uma horda de zumbis? Alguns eram mesmo zumbis? Houve violência sexual? O fato é que o mal está feito. O casal artificialmente feliz que chegou na cidade agora divide um segredo. Esse segredo tanto pode tornar-se o elemento mantenedor de um casamento fadado ao fracasso quanto pode representar o marco que vai antecipar o fim. Na última linha o narrador informa que o protagonista “tornara-se consciente de algo que os separava, e que nenhum deles jamais mencionaria ou esqueceria”.

Em resumo, “Repique macabro” não é uma história de zumbis, é uma história sobre casamento e mais especificamente sobre segredos e silêncios incômodos entre casais.

Esse registro do cotidiano em meio ao obscuro não é estranho na literatura de Aickman. Outro exemplo é o conto “O quarto anterior”, onde uma casa de bonecas macabra é usada para tratar de relações familiares inquietantes. A casa de bonecas reflete e influencia a casa da família que a adquiriu. Nos dois lugares há espaços escondidos onde a verdadeira vida familiar acontece ou deveria acontecer. Esse conto é, talvez, o mais onírico e gráfico do livro. O leitor chega a conhecer o interior da casa de bonecas e seus habitantes. Em sonhos? Talvez.

 “O quarto anterior” possui subtexto biográfico. A vida de Aickman não foi particularmente tranquila e somos apresentados a alguns dos episódios mais importantes por meio de um posfácio especialmente escrito para essa edição pelo ficcionista e ensaísta inglês Philip Challinor, autor do livro “Akin to Poetry: Observations on Some Strange Tales of Robert Aickman”. Aickman, nascido em junho de 1914, na baixa aristocracia inglesa, era filho do que chamou de “casal condenado”. O pai, um homem egocêntrico, pouco prático e temperamental, era 30 anos mais velho do que a mãe. Aparentemente, Robert foi gerado no único encontro sexual que tiveram. O casal de “Repique macabro”, de alguma maneira, também está refletido aqui. Nascido durante a Primeira Guerra Mundial, o escritor cresceu como crítico dos rumos que a humanidade tomou ao longo do século 20. Mais do que conservador, poderia tranquilamente ser designado como reacionário, assim como H. P. Lovecraft. Essa visão política transparece em diversos aspectos de sua obra, mas não engessou sua criatividade. Pelo contrário. Aickman especializou-se na renovação de velhos temas literários. Seu interesse por diferentes tipos de culturas e estudos de ocultismo, realizados nos mais diferentes lugares da Europa, alimentaram sua criatividade e ampliaram seu repertório.

Segundo Challinor, “Aickman era um entusiasta das viagens, considerando-as como uma arte que devia ser planejada e empreendida em seus mínimos detalhes e na companhia de pessoas cuidadosamente selecionadas”. Muitas de suas narrativas se passam durante viagens ou com os personagens fora de casa, ou da zona de conforto. Seu conto mais famoso, “Páginas do diário de uma menina”, publicado em 1973, é exemplar. Trata-se de uma história clássica de vampiros, com todos os clichês do gênero, mas a partir de um ponto de vista inusitado: a descrição da própria transformação em vampiro por parte de uma jovem inglesa que viaja com os pais pela Itália.

Neil Gaiman: ler Aickman é como assistir à apresentação de um mágico

A metalinguagem é evidente. Temos a estrutura epistolar de “Drácula”, de Bram Stoker, e a criatura da noite infiltrada na alta sociedade europeia de “O Vampiro”, de John Polidore. Lord Byron e Percy Shelley, poetas românticos que estão nas raízes da criação do terror moderno, aparecem como personagens, encontrados casualmente durante um passeio. Detalhe irônico, quando a narradora descreve os artistas, anota no diário que “aparentavam ser consideravelmente mais velhos do que eu esperava e Lord Byron consideravelmente mais corpulento (além de muito grisalho, embora eu ache que ele estivesse apenas no início de sua quarta década de vida). O senhor Shelley vestia-se de forma notavelmente desleixada e Lord Byron de modo ainda mais cômico”. Ou seja, Aickman respeitava a tradição, mas não a reverenciava. Sua proposta é de renovação. De fato, antes de Anne Rice, renovou o vampirismo na literatura do século 20. Foi um pioneiro.

Parte desse crédito deve-se a determinadas escolhas estéticas. A opção por uma voz narrativa feminina é uma delas, recurso que repetiu em “O quarto interior”. Neste caso, apesar de ser muito mais uma recriação do que Aickman imaginava como sendo o imaginário de uma menina inglesa do século 19 do que qualquer outra coisa, sua escrita, dentro da proposta, é convincente. O que pode ser comprovado na leitura do ensaio “Páginas de uma iniciação pelo sangue”, de Cid Vale Ferreira, incluso no livro. Trata-se de um estudo aprofundando sobre as origens, a estrutura e a influência do conto no contexto da literatura de horror contemporânea. É um registro fundamental para termos noção da dimensão da influência de Aickman. Influência que não se traduziu em sucesso em vida. Morrendo em fevereiro de 1981, Aickman estava longe de ser um escritor popular. Muitos o reconheciam mais como cofundador da Inland Waterways Association, entidade responsável pela preservação e restauração de parte considerável do antigo sistema de canais do interior da Inglaterra.

O escritor Mike Ashley declarou que “os escritos de Aickman, assim como os vinhos finos, são um gosto adquirido. Não tenho dúvidas de que o seu trabalho permanecerá sempre desconhecido para a maioria dos leitores, e talvez ele o quisesse dessa forma. Ele escreveu o que ele queria e da maneira que queria, para se expressar, não por popularidade. Em outra das suas cartas endereçadas a mim, ele disse: ‘Recebi bastante apreço, mas nunca um grande sucesso comercial, e pergunto-me com frequência se algo do que escrevi voltará a ser publicado’. …É espantoso que alguém da estatura de Aickman tenha dificuldade em vender sua obra”.

Pensando bem, se essa situação aconteceu na Inglaterra, durante a vida do autor, talvez o Brasil não seja um fenômeno isolado. Talvez seja mais um caso exemplar dos rumos que tomaram a cultura ao longo do século 20 e, agora, 21. Ainda é possível vampiros góticos onde imperam zumbis da internet?

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.