Clássico dos filmes de faroeste, que acaba de chegar à Netflix, fará você esquecer Ataque dos Cães em 5 minutos Divulgação / Malpaso Productions

Clássico dos filmes de faroeste, que acaba de chegar à Netflix, fará você esquecer Ataque dos Cães em 5 minutos

Clint Eastwood é, decerto, um dos cases de maior sucesso de Hollywood. Protagonista dos primeiros filmes de Sergio Leone (1929-1989), Eastwood logo se transformou na personificação mesma do anti-herói dos filmes de western, o que, trazendo-se a leitura para o campo árido da sociologia, significa chancelar a vitória cruenta do homem branco anglo-saxão sobre populações indígenas — a pouco e pouco também corrompidas — na conquista do ouro e outras riquezas no Velho Oeste primitivo dos Estados Unidos do século 19. Consciente do papel que representava, o ator tratou de sempre imprimir uma aura de conflito existencial aos tipos que representava no cinema, em especial nos faroestes, nem que fosse apertando ainda mais os miúdos olhos verdes ou se curvando um pouco ao andar em meio à poeira dos rincões da América para escancarar saloons à procura de delinquentes e confusão, antes, durante e depois de uma bebedeira regada a muito uísque malcheiroso. Com toda a calma, o nonagenário Eastwood, talvez a pessoa mais velha em atividade no cinema, fez a transição do intérprete para o diretor — e refinando cada vez mais a abordagem de seu objeto — de uma maneira que impressiona pela organicidade. É como se tivesse calculado cada passo com toda a frieza, desde o início, mais de seis décadas atrás, a fim de chegar ao presente 2022 ainda com muita bala no tambor, disposto a usá-las a seu modo, bem devagar.

Eastwood sentou-se à cadeira de diretor no princípio dos anos 1970, quando estreou “Perversa Paixão” (1971), suspense sobre um radialista perseguido por uma fã. Dois anos mais tarde, o astro dos spaghetti western de Leone se inspirou nos sujeitos insignificantes a que dera vida nos trabalhos do amigo e da experiência resultou “O Estranho sem Nome” (1973), sobre uma figura um tanto marginal que cai do azul (ou emerge das profundezas do inferno) na cidade de Lago, no Arizona, sudoeste dos Estados Unidos e adquire status de verdadeira celebridade ao alvejar de morte três matadores de aluguel. Uma vez que um deles havia sido contratado pelo xerife Sam Shaw, excelente desempenho do divertido Walter Barnes (1918-1998) — um brutamontes saído das fileiras do futebol americano para a tela grande — a fim de dar cabo da gangue composta pelos irmãos Carlin, liderada por Dan, de Dan Vadis (1938-1987), que não tarda a aportar na cidade e trazer o caos, o Estranho, como o protagonista passa a ser chamado — o personagem, curiosamente, ganha um nome perto do final —, assume a tarefa, ajudando o pusilânime Shaw e cavando para si a condição de grande benfeitor de Lago. Como tudo tem um preço, o xerife determina que esse anjo vingador seja atendido em tudo quanto quiser, sem, por óbvio, desembolsar um tostão. Só resta aos comerciantes aquiescer com o achaque e encarar o prejuízo como uma homenagem que o vício presta à virtude, numa crítica contundente de Eastwood à falência do Estado em suas atribuições mais básicas, quase meio século atrás.

Pesando sobremaneira a mão, o diretor mistura à trama a denúncia de episódios de violência sexual em meio à brutalidade do Velho Oeste — que diminuíram nas sociedades contemporâneas, claro, mas,  lamentavelmente, continuam a ocorrer (cometidos em maior incidência por homens que privam da intimidade da vítima) —, o que denota de modo irrefutável o caráter anti-heroico do Estranho. Em contrapartida, o texto do roteirista Ernest Tidyman (1928-1984) se vale de comportamentos vigentes à época, em oposição estratégica ao American way of life (como elementos do movimento hippie, por exemplo), a fim de conferir ao filme leveza nos momentos de respiro cômico, quase sempre relacionados à atuação de Billy Curtis (1909-1988) como o anãozinho Mordecai. Sem medo da patrulha do politicamente correto — muito mais desarticulada que no chatíssimo século 21, mas sempre operante, mormente no que diz respeito à ubiquidade das entidades de classe que “defendiam” artistas de menor visibilidade —, Tidyman transforma “O Estranho sem Nome” num circo à moda antiga, no qual as ditas aberrações também tinham sua vez, argumento absorvido por Eastwood, e protagonizam situações cômicas bem pensadas. Roteirista e diretor fizeram uma raspagem cautelosa do verniz que apresenta o faroeste como um gênero engessado pela truculência e chegaram a outras camadas, mais densas e mais interessantes, que, por conseguinte, possibilitaram ao longa agradar a mais gente. Trocando em miúdos, sucesso.

Prenunciando tempos difíceis para o western, sobretudo na segunda metade da década de 1970, o filme não conta com extras na versão lançada em 2013 pela Universal, em formato blu-ray, para comemorar os quarenta anos da estreia, até porque quase tudo era gravado numa única tomada. Emulando o prestígio de obras-primas como “Yojimbo” (1961), dirigida pelo japonês Akira Kurosawa (1910-1998), e “Por um Punhado de Dólares” (1964), de Leone — e os superando com folga na bilheteria —, “O Estranho sem Nome” critica os desbravadores do agreste interior americano, retratando todo aquele território a norte do rio Grande como um lugar sem lei, ao mesmo tempo que tece loas à contracultura e exalta o espírito plural dos Estados Unidos. Isso é Clint Eastwood puro. Isso é o melhor do cinema.


Filme: O Estranho sem Nome
Direção: Clint Eastwood
Ano: 1973
Gênero: Faroeste/Western/Ação/Sátira
Nota: 10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.