A Revista Bula reuniu em uma lista uma seleção de filmes, aclamados por público e crítica, para você encarar a segunda-feira com resignação. A seleção traz produções lançadas entre 2017 e 2022 e assinadas por diretores consagrados como Bong Joon-ho, Paolo Sorrentino, Richard Linklater, Charlie McDowell e Tatiana Huezo. Entre os destaques, estão “Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial” (2022), de Richard Linklater; “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” (2022), de Ashley Eakin; “The Falls” (2021), de Chung Mong-hong; e “Pieces of a Woman” (2020), de Kornél Mundruczó. Os títulos estão organizados de acordo com o ano de lançamento. As sinopses são de Giancarlo Galdino.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Famoso por incluir em seus filmes a superação de desafios — como em “Boyhood — Da Infância à Juventude” (2014), sobre o processo de amadurecimento de um garoto ao longo de doze anos, com o mesmo elenco, ou “Waking Life” (2001), em que cenas, paisagens e atores foram coloridos e tiveram a imagem redefinida graças a um software desenvolvido em parceria com sua equipe, exatamente como acontece durante a feitura de uma animação —, Richard Linkater apresenta em “Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial” a fusão desses dois trabalhos. Aqui, Linklater narra o cotidiano de uma família americana de classe média no final dos anos 1960 no subúrbio da maior cidade do Texas, estado conhecido pelo rigor de sua gente, irrigado artificialmente pelo dinheiro da NASA, a agência espacial americana, que desenvolve uma de suas fases diante da irrequietude da população. O roteiro de Linklater coloca todas as informações de destaque na boca de seu personagem central, Stan, um garoto de dez anos e meio, que presencia as mudanças da sociedade nos Estados Unidos e no mundo confrontadas com as transformações em sua própria família.

Ser querido, mimado, adorado, venerado pode ter seu lado ruim. Às vezes, subimos tão alto que temos a impressão de que ninguém jamais poderá nos tirar do pedestal em que nos colocamos. Bobagem grossa: chegar tão perto do céu pode acabar nos dando a ideia errada de que somos deuses, e quanto maior a altura, mais difícil a descida — e mais dolorido o tombo. E tanto pior se presenciado por uma cidade inteira, impulsionado pela força brutal da televisão. Na comédia dramática “Granizo”, o argentino Marcos Carnevale faz uma bem fundamentada crítica da vaidade humana a partir da história de Miguel Flores. Âncora de um show televisivo levado ao ar recentemente, cujo principal assunto é a previsão do tempo, Flores, vivido pelo carismático Guillermo Francella, se sai muito bem na função que escolhe desempenhar, até que uma armadilha do tempo, que mesmo com toda a sua experiência não consegue prever, faz com que perca carreira e autoestima de um só golpe. Agora, resta a Flores sair de cena e pensar numa forma de se redimir e voltar por cima.

Embora curtíssimo, “Perdoai-nos as Nossas Ofensas” já nasceu clássico. Com pouco mais de catorze minutos, incluídos os créditos, o trabalho da americana Ashley Eakin encara o nazismo sob uma perspectiva absolutamente nova, valendo-se de seu roteiro enxuto, coescrito com Shawn Lovering, e sem prescindir de detalhes técnicos que exaltam seu lado de obra de arte, como a fotografia primorosa de Michael Galbraith. O burburinho em torno da história — a perseguição da SS, a polícia política de Hitler, a um garoto alemão cuja deficiência física ameaça a hegemonia do regime, brilhantemente encarnado por Knox Gibson — é muito justo, todavia não seja nem de longe o suficiente para fazer o espectador médio alcançar a grandeza do enredo. Em raras ocasiões, num tempo de projeção tão curto, um filme fora capaz de chocar, encantar, cristalizar ideias e suscitar outras reflexões sobre o fenômeno sociológico mais estudado da história da civilização. E também um dos mais perversos.

“Sorte de Quem?” é certamente mais genial do que o próprio diretor, Charlie McDowell, pode imaginar. Tomando por ponto de partida um argumento aparentemente sem qualquer vínculo com o que se pretende discutir, McDowell elabora um raciocínio ousado para analisar a fragilização dos relacionamentos e a hipocrisia daqueles que a compõem. Todo o conflito tem início quando os personagens anônimos de Lily Collins e Jesse Plemons, um casal acintosamente rico para a pouca idade que ostentam, decidem passar uma temporada na casa de campo que mantêm num lugar retirado e aprazível, uma reprodução em cores as mais vivas de uma tela de Monet ou de Van Gogh. Antes que tenham chegado, quem desfruta do amarelo aceso da vastidão dos laranjais da propriedade, uma beleza gratuita da fotografia de Isiah Donté Lee, é o tipo vivido por Jason Segel, que, conforme se vai assistir algumas sequências adiante, não é só um delinquente um tanto atrapalhado, mas um psicopata frio, cuja covardia e a grande tibieza frente à vida lhe servem de pretexto para fazer toda a sorte de barbaridades, a exemplo de entrar em casas que não lhe pertencem sem convite.

“A Mão de Deus” remonta à Nápoles de 1986, quando da adolescência do diretor, Paulo Sorrentino. Seu protagonista e alter ego, Fabietto Schiesi, uma interpretação mediúnica de Filippo Scotti, é um garoto de 17 anos, tímido e observador como poucos, à procura de sua própria identidade numa família numerosa, onipresente, invasiva. Ele é o único a deixar escapar algum laivo de vergonha diante da sucessão de eventos absurdos que definem o convívio com os parentes — e o imbróglio místico em que se mete a tia materna, Patrizia, de Luisa Ranieri, com um São Januário mostrado sob a figura de um fauno que corrompe senhoras casadas, logo no começo do longa, o ilustra bem. Acontecimentos como esses vão dando a tônica do roteiro, decerto o trabalho mais despretensioso e mais preciso de Sorrentino, em que os detalhes são fundamentais. Os instantes de (pouca) sensatez que permeiam as conversas, os olhares, os gestos — até comedidos, em se tratando de italianos, e italianos do Sul — precisam ser levados em conta a fim de que o todo faça sentido nessa comédia memorialística, que guarda uma grande tristeza no meio do enredo.

A bagagem como documentarista de sucesso é o que capacita Tatiana Huezo a se desdobrar sobre uma narrativa tão intrincada quanto a guerra travada entre o governo do México e os cartéis de drogas, o flagrante desrespeito aos direitos humanos e o tráfico de mulheres para fins sexuais. Em grande parte das vezes, o que se entende por polícia não cumpre suas funções constitucionais e, ou por inépcia ou por se vender mesmo, não faz nada. Eis o cenário perfeito para que o sequestro de mulheres e meninas denunciado no longa continue à toda carga, e as que não podem ser aproveitadas pelas quadrilhas pagam com a própria vida, ocasião em que seus cadáveres são espalhados pelos vilarejos como forma de aviso. Huezo, salvadorenha radicada no México, constrói uma trama estarrecedora, e tanto pior porque explorada sob a perspectiva de uma criança. Por mais que os adultos pensem que os pequenos não têm a devida dimensão do horror que acontece à sua volta, Ana fareja o perigo e transpira pânico, como todo mundo. A personagem de Ana Cristina Ordóñez González, numa performance de gente grande, é a tradução perfeita da vida daqueles aldeões.

A pandemia é só um trampolim em que Chung Mong-hong sobe para se projetar e finalmente se lançar sobre o que de fato quer discutir em “The Falls”. No Oriente — na China, sobretudo —, um pai pode ser tão distante do filho quanto o macaco do cão, mas os laços entre a mãe e sua prole às vezes pode apertar tanto que chega a sufocar. Chung Mong-hong consegue como poucos absorver o zeitgeist, o espírito que representa o tempo em que vive, a fim de exercer seu ofício da melhor forma, dando um passo depois do outro, concentrando-se na produção a que se dedica, sem muita ideia sobre como vai se sair, principalmente diante da crítica. Quanto ao público, esse fica cada vez mais preso pelo teor encantatório de tudo o que diretor leva à tela, e o espectador, sim, se pergunta se algum dia o taiwanês há de fazer alguma coisa que não seja genial, ansiando, por óbvio, que a resposta seja sempre negativa. “The Falls” honra a tradição taiwanesa, iniciada em 1980, de conseguir emplacar um filme na seleção da Academia. Talvez esteja chegando a hora de avançar uma etapa e mostrar o valor do cinema feito por gente tão aguerrida.

É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que esteja. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha, que por sua vez perde completamente o interesse pelo parceiro. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez, ainda que o final empenhe uma promessa de felicidade.

Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.