Extremo, instigante e assustador, suspense visceral da Netflix é um dos melhores filmes de 2022 Manolo Pavón / Netflix

Extremo, instigante e assustador, suspense visceral da Netflix é um dos melhores filmes de 2022

O cinema consegue edulcorar as dores humanas, mascará-las de tal forma a ponto de fazê-las nobres, até que o sofrimento muitas vezes pareça desejável. Expor na tela grande as agruras nossas de cada dia em quadros por segundo tem sido um expediente useiro e vezeiro no cinema, que se vale de motes que tanto escandalizam pela verossimilhança com a vida do espectador ordinário como intrigam por evocar tramas que só mesmo o pensamento delirantemente original de um diretor de gênio pode conceber. De uns tempos para cá, tenho valorizado ainda mais a leveza, que nada tem a ver com frivolidade ou até comedimento, pelo contrário. É muito mais difícil se dizer as difíceis e complexas verdades, necessárias e inoportunas, usando de delicadeza, recusando-se a pesar a mão, como se dispondo a levar um filme como o cavalheiro conduz a dama. Cinema é uma manifestação sinestésica por excelência, ninguém o questiona; assim mesmo, não é qualquer um que compreende a importância de se conceder a cada emoção do homem sua exata medida, sabendo que todas têm vez. Como num corpo de baile.

Desde “Cisne Negro” (2011), em que Darren Aronofsky projetou sobre uma singela bailarina os malogros e as obsessões de todo profissional que se vê encurralado, obrigado a provar para si mesmo que não é uma farsa, que filmes sobre dança têm adquirido ressonância crescente. O espanhol Jota Linares resolveu apostar na mesma crua suavidade de Aronofsky para dizer suas novas e velhas opiniões sobre a vida em “As Garotas de Cristal” (2022). Partindo de argumento semelhante ao do americano, o roteiro de Linares e Jorge Naranjo também apresenta uma bailarina clássica que se contrapõe à outra, numa conjuntura trágica. Irene é escolhida a primeira bailarina do National Classical Ballet, uma das companhias de dança mais prestigiadas da Espanha depois que María, sua antecessora, toma uma decisão drástica. Como se o sucesso trouxesse em seu bojo uma carga de maldição, Irene, performance empolgante de María Pedraza, logo é algo da inveja de boa parte dos colegas, encabeçados por Ruth, a ex-namorada de María, que não aceita que Irene a substitua e queria ela mesma o papel principal em “Giselle”, balé romântico em dois atos composto em 1840 por Adolphe Charles Adam (1803-1856), baseado na letra da ópera de Jules-Henri Vernoy de Saint-Georges (1799-1875) e Théophile Gautier (1811-1872). Quando da revelação de que Irene será a líder do elenco, uma cena faz vir à tona a suspeita de que Ruth tenha alguma coisa a ver com a saída de María, e talvez até houvesse se envolvido com a ex-primeira bailarina visando mesmo esbulhar seu posto. Acostumada a ser sozinha e nadar contra a maré quando se trata de perseguir seus sonhos, uma vez que não conta com o apoio dos pais, que manifestam uma preocupação legítima quanto a seu futuro, a personagem de Pedraza não espera conseguir a amizade sincera de ninguém, mas se engana. Aurora, de Paula Losada, é capaz de entendê-la perfeitamente, já que vive situação oposta. A mãe de Aurora, Pilar, papel de Marta Hazas, projeta na filha a carreira que não pôde ter, o que faz da garota, já suficientemente insegura por causa de um hemangioma que lhe enodoa mais da metade da face esquerda, vire um poço de solidão.

O sucesso não é para todos e fracassar pode ser só um jeito torto de admitir novas possibilidades. Todo mundo se depara com dificuldades ao longo da vida, mas enfrentá-las é para os fortes. Os instantes muito particulares de dor, de angústia, de solidão de cada homem sobre a face da Terra fazem-no mais senhor de si, mais conhecedor de sua alma e da força invencível que há nela. Encarnando essa aura pesada do sucesso que oculta em sua essência um qualquer fracasso existencial, Pedraza faz de Irene uma espécie de mártir, a heroína perfeita, cuja glória lhe sabe amarga e parece denotar uma culpa que não lhe dada a conhecer. A metáfora de Irene e Aurora — a paz no amanhecer, misturando-se o que representam os nomes de cada uma —, dançando juntas num lago congelado (o filme foi distribuído nos países de língua inglesa sob o título de “Dancing on Glass”, “dançando no gelo”, em tradução livre), é levada a cena uma vez e repisada no desfecho apoteótico, um dos espetáculos mais poéticos do cinema contemporâneo.

Com essa última sequência de “As Garotas de Cristal”, Jota Linares corrobora as palavras de Isadora Duncan (1877-1927), uma das maiores bailarinas e coreógrafas de seu tempo, sobre o mistério indecifrável da dança. E da arte como um todo.


Filme: As Garotas de Cristal
Direção: Jota Linares
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.