Novo filme da Netflix mostra como é ser um estranho no mundo e a alegria de encontrar seu lugar

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Em alguma medida, a adolescência é cruel com tudo mundo e se conseguimos vencê-la — procurei outro verbo, mas nenhum é tão adequado — e chegamos até aqui, podemos ter a certeza de que nossa vida tem um propósito, basta encontrá-lo. É pena não termos essa determinação e toda essa maturidade quando os estranhos fenômenos que pululam enquanto temos entre treze e dezenove anos (e muitas vezes mais) não param de se suceder, no mundo distante para além do nosso quarto, desarrumado, e entre aquelas criaturas vindas sabe Deus de que galáxia, mas que insistem em se dizer nossos pais. Todo esse suplício, pensamos, até poderia se fazer tolerável, mas como se manter o equilíbrio psíquico se nosso próprio organismo nos sabota promovendo um legítimo bombardeio de hormônios que não pedimos, nos deixam ou gordos ou magros demais, deformam nossa pele e nos empurram para compulsões animalescas por comida, por jogos eletrônicos, por sexo?

Tratando de forma leve e jocosa das pequenas e grandes tragédias da adolescência, “Metal Lords” (2022) se equilibra com intrepidez entre o drama e a comédia, sem nunca pesar a mão para esta ou aquela abordagem. O diretor Peter Sollett se revela um grande desbravador do espírito agreste do adolescente do século 21, de quem nós, jurássicos quarentões, tendemos a ter pena, porque o sintamos completamente perdido em meio ao mundo de transformações cada vez mais rápidas e definitivas em que nos encontramos todos  ainda que saibamos que, no fundo, eles é que se julgam superiores e parecem aliviados por terem nascido e crescido longe da ameaça de ter de encafuar em bibliotecas sombrias e esfumaçadas para fazer a pesquisa do trabalho pedido pelo professor de história ou geografia, apresentado em folhas de papel almaço e cartolinas, mico dos micos — ainda se fala “mico”? Hoje, os inimigos são outros. 

Roteirizado por D.B. Weiss, célebre pelo sucesso de “Game of Thrones” (2011-2019), o filme de Sollett até abrange o inesgotável conflito de gerações entre pais austeros e filhos que ignoram limites (ou o inverso, e assim mesmo apenas tangencialmente e lá pelo meio da narrativa), mas prefere se concentrar na fragilidade das relações entre os adolescentes em si. O protagonista, Hunter, vivido por um aplicado Adrian Greensmith, é um headbanger raiz, que ansiando juntar o útil ao agradável, propõe ao melhor amigo, Kevin, de Jaeden Martell, formar uma banda, o que possibilitaria aos dois abreviar   um pouco a reserva que todo o restante da escola tem quanto a eles e dar início a uma carreira no concorrido mundo do heavy metal. Kevin aceita o desafio e agora outra dificuldade se impõe: fechar o conjunto, uma vez que são apenas os dois e a bateria medíocre de Kevin, ainda que aliada ao talento excepcional de Hunter à guitarra, não são o bastante. Um problema se desdobra em outro e eles concluem que não têm muita margem para escolha, porque Hunter já brigou com meio mundo e o campeonato interescolar de bandas se aproxima.

No ensaio da fanfarra da escola, Kevin conhece Emily, furiosa porque o professor aponta sua desafinação à flauta diante dos outros músicos. O chilique de Emily, outra grata surpresa na atuação de Isis Hainsworth, motiva o personagem de Martell a falar com ela sobre a ideia de tê-la na SkullFuckers, a finada banda de Hunter, mas que mantém o nome escolhido por ele. O texto de Weiss levanta três preconceitos aqui, imbricadamente ligados. Hunter deixa subentendido que desgosta da sugestão de integrar à dupla uma garota, muito menos uma garota como Emily, que precisa tomar tranquilizantes para domar a instabilidade de seu humor. O terceiro é ainda mais complexo, já que nascido de um engodo, não do personagem de Greensmith, mas do próprio roteirista. Hunter também desdenha de Emily, violinista de formação, por achar que alguém que se dedica a um instrumento tão sofisticado, quiçá elitista, não esteja à altura da pauleira do metal. Acontece que na edição de 2013 do Rock in Rio, o maestro Roberto Minczuk, regente da Orquestra Sinfônica Brasileira, a OSB, executou duas das sinfonias de Beethoven, a quinta e a sétima, na noite que abriu o evento — para o bem ou para o mal, ninguém notou a diferença. Aliás, o Brasil pode se considerar um vanguardista no assunto: em atividade entre 1991 e 2019, o Angra foi destaque no cenário roqueiro internacional ao encampar a fusão entre metal e música erudita.

Hunter não estava de todo errado quanto a prever atritos com Emily, agravados depois que a musicista e Kevin assumem um namoro impressionantemente sereno, como se encontrassem um no outro que tanto procuravam (e aproveitarem as afinidades em comum para se livrar do que consideram um problema). Vítima de um acesso de ciúme — e não se trata de nenhuma inclinação homossexual —, o personagem de Greensmith, incorporando o componente vilanesco da trama sob o ponto de vista de Sollett, prepara uma apresentação na classe a fim de provocar a moça, que cai na armadilha e quebra a guitarra de Hunter na cabeça do rapaz. O feitiço vira contra o feiticeiro e o guitarrista do SkullFucker é suspenso, as vésperas da disputa entre bandas de garagem. Como desgraça pouca é bobagem, seu pai, papel de Brett Gelman, resolve exercer a autoridade pela qual nunca se interessou e manda o garoto para a clínica de gerenciamento comportamental — eufemismo para uma mistura de reformatório e hospício, com foco no tratamento da dependência química — dirigida pelo médico de Joe Manganiello, numa participação afetiva, mas memorável. Ele mesmo um ex-garoto-problema e ex-roqueiro da pesada, logo se identifica no garoto, que nunca usou drogas e é muito mais careta do que parece, e lhe dá alta, mas só depois de comprida a quarentena de 48 horas, prazo que não pode observar se quiser estar disponível para o torneio. As cenas que se seguem, de uma delinquência juvenil inofensiva e adorável, movimentam o filme, até outra reviravolta, já com Hunter, Kevin e Emily tocando juntos no palco da Batalha de Bandas, sob o nome de SkullFlowers, parece um tanto farsesca.

“Metal Lords” tem um desfecho para cima, malgrado ninguém tenha motivos para gargalhar ou bater cabeça ao som de “Machinery of Torment”, composta por Tom Morello, Dan Weiss e Carl Restivo especialmente para o longa — a canção é boa; o momento de fruição é que se mostra exíguo demais. O trabalho de Peter Sollett perde potência justo no segmento musical, mas não deixa de ser uma metáfora vigorosa sobre o quão caótico podem ser aqueles sete anos logo após a infância. Mesmo quando se é um rock star, ou aspirante a isso.


Filme: Metal Lords
Direção: Peter Sollett
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Drama/Coming-of-age/Musical
Nota: 8/10