Num mundo em que redes sociais tornaram-se apenas mero pretexto para se destilar ódio; num tempo em que as pessoas fazem questão de manifestar seu desprezo umas pelas outras; com uma humanidade passiva diante do sofrimento que vem da ignorância em sua forma mais crua, a guerra, ainda faz sentido se falar em bondade? E quanto a levar ao ar um programa que combate nessas três frentes de uma só vez, indo ao cerne do problema e tentando erradicá-lo antes que se cristalize e já não se possa mais esperar grandes progressos, ou seja, dirigindo-se às crianças — e, por conseguinte a seus pais, e alcançando amanhã o mundo inteiro? O que pensar em se deparando com o fato de que já houve esse programa, extinto por alguma razão, ou porque o menino compassivo e ingênuo de ontem transformou-se no pai amargurado e perverso de hoje, que por seu turno cria seus próprios novos tiranos, que hão de dar origem a outros tantos monstros, em escala industrial e sem fim, até que sobre apenas os vermes para contar sua versão da história? Mudaram as crianças e não mudei eu?
Em 2020, a diretora Marielle Heller tentou fazer o tempo voltar a algum dia em que se pôde ligar a televisão nos Estados Unidos e viver como se todos fossem felizes, como se ser feliz fosse tão fácil quanto ligar a televisão — e pensando bem, pode ser, sim. “Um Lindo Dia na Vizinhança” é uma espécie de episódio (episódio, não: capítulo) estendido de “Mister Rogers’ Neighborhood” (“a vizinhança do senhor Rogers”, em tradução literal), exibido pela PBS, a emissora pública americana, entre 1968 e 2001 — como se vê, as mudanças são recentes —, cujo anfitrião, definitivamente, marcou época. Fred Rogers (1928-2003) foi um homem raro.
Reunindo as técnicas absorvidas durante os anos na Faculdade de Dartmouth, uma das mais tradicionais da América, e na Rollins College, onde se graduou em música, e o talento para se comunicar, Rogers foi parar na tevê justamente por se recusar a ser óbvio, apesar do programa nunca sair muito da fórmula consagradora: Rogers vinha da rua, imune aos opróbrios da natureza humana, chegava ao estúdio, configurado como se fosse sua própria casa — e a sensação para o espectador era essa mesmo —, trocava o austero paletó azul-petróleo por um suéter vermelho, sua marca registrada, os mocassins marrons por um par de tênis, e começava a conversar com sua audiência, ainda que separado dela por dezenas, centenas, quiçá milhares de quilômetros. Tom Hanks, em mais uma de suas interpretações mediúnicas, se mostra muito à vontade no papel de um homem maduro que não se furta ao que se considerava à época um comportamento um tanto excêntrico — e ainda se considera —, nunca se esquecendo de soltar a voz sempre que possível. Tanta felicidade, tanta ingenuidade, doçura e benevolência só podem esconder uma personalidade doentia, disfarçada por alguém muito esperto, é o que pensa Lloyd Vogel, o repórter da revista “Esquire” destacado para entrevistar Rogers e escrever um perfil sobre o apresentador, embora tenha sido pautado para relatar apenas o que pudesse ver, sem elucubrações de nenhuma natureza. Conhecido pelo ceticismo, o jornalista vivido por Matthew Rhys se ressente de ter de deixar sua porção cínica de lado e aceita a missão, alertado pela mulher, Andrea, de Susan Kelechi Watson, para que não estrague suas melhores lembranças.
As melhores cenas do filme são exatamente as que registram a desconfiança de Lloyd, um homem orgulhoso de sua incredulidade de tudo e de todos, em contraponto ao personagem de Hanks, que nem é o verdadeiro protagonista do roteiro de Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster, mas que assim mesmo rouba a cena, a ponto de ter sido indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. A ingenuidade e a empatia de Rogers mais que intrigam Lloyd: agridem-no. O articulista bem que tenta, mas não consegue passar incólume ao convívio com Rogers, que numa competente virada de Heller, passa a inquirido a entrevistador sem que o outro perceba (ou se incomode). A verdade é que há anos este homem ferido pelo passado, vindo de uma relação muito atribulada com o pai, Jerry — vivido por Chris Cooper comoventemente dedicado —, precisava desabafar. E agora, com um filho recém-nascido, morre de medo de repetir os erros do pai.
Saída de outra imersão na personalidade de uma pessoa real, Heller — badalada pelo surpreendentemente lúgubre “Poderia me Perdoar?” (2019), em que mergulha na farsa criada pela jornalista Lee Israel (1939-2014) para se manter no mercado literário e de quebra faturar um bom dinheiro —, consegue mais uma vez reviver um tipo de ampla reverberação na cultura pop americana, mas que ao contrário de Israel nunca perdeu sua luz. Rogers volta à vida em “Um Lindo Dia na Vizinhança” graças ao desempenho irretocável de Tom Hanks, que consegue dar a Rogers (muito mais parecido com George Clooney) a sua cara, com a licença do trocadilho, mas não só. A fotografia de Jody Lee Lipes se constitui numa brincadeira com quem assiste, e a reprodução dos estúdios da PBS se iluminam e se apagam conforme a disposição de Hanks e Rhys no set. Quando Lloyd aparece sozinho, como um espectro a rondar a própria vida, o ambiente está mergulhado em trevas, que se dissipam logo no momento em que Rogers entra em cena e os dois dão sequência ao papo. Jade Healy, num trabalho filigranado de direção de arte, mune o cenário de detalhes que fazem toda a diferença, como Daniel Tigre, com quem Rogers contracena, além de miniaturas de Nova York e Pittsburgh, por onde o biógrafo se desloca, numa alegoria despretensiosamente lírica sobre como duas pessoas, mesmo habitando cidades diferentes — e, por extensão, universos paralelos —, podem superar suas idiossincrasias e se tornar grandes amigas. Como se o mundo fosse uma imensa vizinhança.
Muito mais para Lloyd Vogel que para Fred Rogers, escarafunchei a biografia do apresentador e senti um alívio libertador ao não encontrar seu nome relacionado ao cada vez mais onipresentes escândalos de assédio moral, sexual e a monstruosa pedofilia, que infestam a sociedade e os bastidores do showbusiness. Confesso que derramei uma lágrima por Rogers, não pelo excelente trabalho de Marielle Heller, mas por saber que aquela figura tão pouco afeita ao chão da humanidade e ao mesmo tempo tão sensível às suas dores, morreu depois de lutar contra um câncer de estômago, aos 74 anos, quando poderia ainda estar por aqui e chegar ao menos a um merecido centenário. Pensei melhor e concluí que talvez o mundo tenha se tornado um lugar cruel para alguém tão puro. Acho que preferiu assim.
Filme: Um Lindo Dia na Vizinhança
Direção: Marielle Heller
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 10
Onde assistir: Amazon Prime Video