Embora todos tenhamos o direito de sonhar, muitas das nossas aspirações ficam mesmo relegadas para sempre ao mundo das ideias. Tão explorada por Platão (427 a.C. – 348 a.C.), essa “sombra do mundo real”, esse mundo paralelo em que só a perfeição tem lugar, abriga os desejos que nunca conseguimos realizar, seja pelas dificuldades que invariavelmente surgem no caminho, ou pelos outros rumos que a própria vida decide tomar. Cada vez mais alinhado a um novo paradigma, que quase sempre aborda negros como indivíduos dotados dos mesmos direitos que cidadãos de qualquer outra etnia, “Notas de Rebeldia” (2020) abraça um axioma inicial de que se fala tão pouco que até parece ficção científica.
Os vinhos constituem um universo à parte, com suas regras próprias, idiossincrasias e especialistas que se julgam alguns níveis acima do chão da humanidade. Numa comédia leve de alguns trechos ácidos, o diretor Prentice Penny desfaz estereótipos em seu longa de estreia, propondo-se a transformar a ótica do espectador ao apresentar seu protagonista, um homem negro aficionado por vinhos que resolve deixar de ser apenas um vendedor e se tornar um sommelier master, um mestre em servir e dar sua opinião sobre as mais diferentes configurações da bebida. Passada a modinha popularizada por bacanas das grandes metrópoles mundo afora, o que fica — e “Notas de Rebeldia” o pontua muito bem — é que para pode ser considerado um legítimo connaisseur de vinhos é preciso mais que vontade. Essa vontade permeia a vida de Elijah há algum tempo, e além dela existe também a aptidão que, bem burilada, pode virar talento. Mas, para tanto, vai ser necessário ir além do trivial.
Levando o filme praticamente sozinho, Mamoudou Athie está perfeito como o filho caçula de uma típica família afro-americana, barulhenta, mas amorosa, e todo esse ruído, e todo esse amor se voltam contra ele em alguma proporção. Athie tem o condão de canalizar as diversas facetas de Elijah, deixando claro que o rapaz também ama os pais, Sylvia, interpretada pela versátil Niecy Nash, e Louis, vivido por Courtney B. Vance, meio engessado no papel do pai durão que repele mudanças repentinas e comportamentos fora do previsível por parte dos filhos, ainda que saiba que eles não podem ser completamente felizes sendo o que Louis espera que sejam. E Elijah tem mesmo uma inclinação quase orgânica para com os vinhos. Para conquistar uma nova freguesa, Tanya, de Sasha Compère, usa uma metáfora bem original e compara vinhos a músicos. O Chardonnay estaria para Jay-Z, “o avô dos vinhos”, como o Riesling estaria para Drake, e toda essa gentileza acabaria, claro, em namoro.
Contrariando as expectativas do pai, que também tem seus sonhos e não abre mão de vê-lo assumindo o restaurante da família depois que ele se aposentar, Elijah se matricula num curso preparatório para o exame que confere o diploma de sommelier, rigoroso a ponto de ter contemplado somente 236 candidatos em todo o mundo. Eric, tão esnobe que ganhou o apelido de Harvard, onde diz ter estudado, e Richie, personagens de Matt McGorry e Gil Ozeri, respectivamente, serão seus rivais, mas enquanto o dia D não chega, os três, acompanhados da bela Leann, de Meera Rohit Kumbhani, compõem um grupo de estudo, em que realizam degustações e tentam se sabotar uns aos outros nos exercícios para identificar a procedência e as notas de fundo de determinada safra — o título faz referência justamente a esse conceito. A turma é convidada a participar de uma série de aulas em Paris, como prêmio pelo bom rendimento, mas como sempre tem de haver uma nuvem pesada mesmo num céu azul, devem pagar dez mil dólares pelo presente. A muito custo, Elijah consegue metade do valor depois de vender o carro, e numa coleta em família organizada pela mãe, aparecem outros 3.820,45 dólares — Penny não diz nada sobre os 1.179,55 restantes, mas ofereçamos esse desconto (com trocadilho e tudo), certo? Ele embarca para a Cidade Luz, mas duas reviravoltas, uma envolvendo dinheiro mais uma vez, seguida de um fato muito mais grave, o impedem de concluir a experiência.
Paradoxalmente, a volta ao lar adquire a forma de um exílio, em que um Elijah desalentado confronta a dor de uma ausência, uma escolha narrativa apressada, que redunda numa condução meio artificial desse conflito. Por outro lado, o regresso se presta a reaproximação entre pai e filho, carentes como nunca um do outro, momento em que o filme vira a chave para o drama, mas quase derrapa, se salvando por pouco de tornar-se uma xaropada intragável. Mesmo de volta ao expediente do estabelecimento do pai, que conseguira um empréstimo e abrira outra loja, o personagem de Athie retoma as aulas no curso de sommelier, e o ator é expedito em fazer com que o público note que essa sua obstinação é o que deixa tão próximo de Louis, que, como ele, é um lutador por natureza.
Valendo-se de um elenco eminentemente negro — e talentoso, a começar por Mamoudou Athie —, Prentice Penny leva seu filme como um workshop de vinhos, daqueles em que se prova de tudo com uma moderação exagerada. Há filmes de que é mesmo impossível se embriagar, embora nunca se tenha esperado nada além de boa diversão de “Notas de Rebeldia”. Um brinde à prudência!
Filme: Notas de Rebeldia
Direção: Prentice Penny
Ano: 2020
Gênero: Comédia dramática
Nota: 8/10