O cinema é muitas vezes displicente e trata como brincadeira assuntos sérios. A ocorrência de forças ocultas que dominam espíritos enfraquecidos por algum trauma é decerto um dos temas que mais gera controvérsia — e piada. Desde “O Exorcista” (1973), clássico do gênero dirigido sob o olhar arguto de William Friedkin, se tem falado com mais atenção a respeito do que vem a ser exatamente a ação de entidades do além-vida exercendo influência sobre uma alma doente, tanto mais combalida depois de sentir a presença do mal em sua forma mais devastadora e visível. Por outro lado, produções satíricas como “Todo Mundo em Pânico” (2000), de Keenen Ivory Wayans, não raro roubam a cena, voltando a abordagem para o terreno pantanoso da galhofa, e então tentar fazer com que a audiência enxergue a relevância e a seriedade do assunto exige um esforço sobre-humano.
“O Ritual” trata do exorcismo de manifestações demoníacas com o decoro necessário. No introito do filme de Mikael Håfström, lançado em 2011, a explanação de João Paulo 2° (1920-2005), em inscrições sobre uma tela negra acerca da realidade da existência de ritos de livramento, que expurgam Satanás, incorporado por seres humanos, deixa patente que esse ramo da Igreja continua mais ativo do que nunca. Segundo o próprio filme registra, o Vaticano recebe mais de quinhentas mil solicitações de expulsão de demônios, e, para espanto geral, a maioria têm sua explicação no mundo da matéria. Pode-se querer começar uma discussão menos afeita ao campo da parapsicologia do que à semântica sobre se faz sentido afirmar que o diabo está vivo, uma vez que seu tempo é outro, seu espaço é o mundo todo e seu modo de existir quase nunca toca à aparência física. Puro glacê retórico. A declaração do papa, tomada em seu sentido amplo, alcançam a dimensão do que de fato interessa, ou seja, o livre trânsito de Lúcifer e sua legião de outros anjos caídos e almas danadas que migram do inferno para a Terra a seu mando, a fim de perturbar a vida íntima de uma pessoa, em muitos casos levando-a a cometer o pior dos pecados, que em casos como estes devem ser apreciados com mais benevolência pela Santa Sé.
“O Ritual” toma por premissa o trabalho missionário de Lucas Trevant, vivido por Anthony Hopkins, padre americano que se especializara em esconjuração e passara a morar em Roma, tão caro o tema parece ao pontificado. Enquanto não se esmiúça a atuação do padre Trevant, entra em cena Michael Kovak, interpretado por Colin O’Donoghue, meio perdido por não querer dar continuidade ao negócio do pai, Istvan, de Rutger Hauer, mas sabendo que só conseguiria evitar a mágoa dele se optasse pela carreira religiosa. Como a vontade de se livrar de qualquer possibilidade de ser o próximo dono da funerária da família, no ramo há séculos, e ter alguma autonomia sobre a própria vida o arrebata, Kovak deixa Chicago e o pai, que ama e com quem consegue se entender, e dá esse pequeno golpe. O ingresso no seminário é por interesse, para liquidar as duas grandes questões que o impedem de ser quem deseja, e ao cabo de quatro anos, às vésperas de fazer os votos e receber a ordenação, ele decide abandonar o noviciado. Chega a escrever um e-mail endereçado a seu orientador, o padre Matthew do expressivo Toby Jones, que não considera a mensagem nem a encaminha a seus superiores. Fala-se numa possível cobrança pelos custos da formação de Kovak, orçada em exorbitantes cem mil dólares, mas não é bem assim que as coisas se dão na vida real, ou seriam consagrados ainda menos padres que hoje, afinal, quem gostaria de ter sob a cabeça essa espada de Dâmocles, saber que uma possível e sempre bem-vinda reavaliação sobre decisões tão fundamentais implicaria uma dívida invencível? O próprio personagem de Jones fala a seguir sobre o déficit de mais de três mil párocos em dioceses de todos os Estados Unidos, e esse é o verdadeiro motivo que o impele a persuadir seu pupilo, não míseros cem mil dólares, tanto mais insignificantes frente à sempiterna opulência da Igreja.
Muitos são os chamados e poucos os escolhidos, e estes são chamados por Deus, que os procura e os resgata, como na parábola do pastor que larga suas 99 ovelhas e vai atrás daquela que se desgarrou. A todo instante, Håfström repisa o argumento da incipiente falta de vocação de Kovak, que se transforma na certeza de que não poderia estar no lugar mais adequado e na hora mais exata ao ser convidado a presenciar o ritual exorcista de Rosaria, em que Marta Gastini dá vida a uma mulher estuprada pelo pai, abandonada ao saber que estava grávida dele. A ideia da internalização do trauma, passada erroneamente como possessão do diabo, é bem trabalhada pelo diretor, que mostra que Trevant não é o profissional acima de qualquer suspeita que o agora padre Kovak imaginava que ele fosse.
Completamente enredado e corrompido por suas fantasias, o veterano acaba precisando ele mesmo da ajuda do colega recém-ordenado, numa das sequências mais cenicamente impactantes do roteiro de Michael Petroni, em que Hopkins dá o show que se espera. A inclusão da brasileira Alice Braga na história, como a jornalista Angelina Vargas — de nacionalidade incerta, mas que conta com nome e sobrenome —, personificando a tentação carnal que nunca se materializa é, também por isso, de todo dispensável, ainda que Braga forneça ao filme o que exigem dela.
Malgrado dê seus tropeços teóricos, “O Ritual” lida com o terror genuíno, o terror da vida real e o mais avassalador, da forma mais transparente e refletida que um filme dessa natureza consegue, e Mikael Håfström merece o crédito por isso. Se não se ativesse a questões tão elucidativas no início, perdendo energia no não-romance entre os personagens de O’Donoghue e Braga, talvez tivesse chegado lá. O diabo mora nos detalhes.
Filme: O Ritual
Direção: Mikael Håfström
Ano: 2011
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10