O filme que é um banho de vida e uma celebração da esperança

O filme que é um banho de vida e uma celebração da esperança

Depois da morte, a coisa mais apavorante que pode acontecer a alguém é assumir uma condição que não é propriamente o fim da vida, mas que demanda cuidados, intensivos, constantes e incômodos. Removendo-se o verniz filosófico, a ninguém parece razoável ter de abdicar do seu cotidiano, seja altamente estimulante ou uma variação de tédio de infinitas notas, por causa de uma doença. Mas é exatamente o que acontece com Jean-Dominique Bauby (1952-1997), o protagonista de “O Escafandro e a Borboleta” (2007). Vítima de um derrame maciço, que o priva de todos os movimentos do corpo, à exceção do comando do olho esquerdo, Bauby se vale justamente desse recurso que lhe sobra a fim de ditar à fonoaudióloga que o acompanha suas derradeiras impressões sobre a vida. Diante de uma tabela com as letras do alfabeto, sempre que quer fazer uso de uma delas, o protagonista, vivido com total entrega por Mathieu Amalric, pisca o olho. Foi assim, palavra por palavra, letra por letra, que Bauby legou ao mundo um dos relatos mais vivazes de uma pessoa que enfrenta agonia semelhante, pleno de lances melancólicos, sem dúvida, mas providencialmente entremeados de passagens em que o jornalista, editor da revista “Elle” na França, exalta a alegria de viver. Seu livro de memórias, curiosamente chamado “O Escafandro e a Borboleta”, saiu do prelo em 1997, pouco antes do jornalista morrer.

Tendo de lidar com uma verdadeira  parafernália a fim de continuar vivo, Bauby, em seu senso de humor invencível, considera o equipamento parecido com uma máscara de mergulho, o escafandro, sendo ele próprio a borboleta, animal conhecido por conter em sua natureza uma transformação radical. Henriette Durand, a fonoaudióloga que se empenha em sua reabilitação, interpretada por Marie-Josée Croze num desempenho comovente, embarca com ele em sua jornada de autoconhecimento e aquietação de velhos apetites, mas não todos. O personagem de Amalric continua a ser um mulherengo incorrigível, que lembra com uma riqueza de detalhes que impressiona — mormente para alguém no seu estado —, tanto dos momentos de euforia e placidez ao lado da ex-mulher, Cèline, de Emmanuelle Seigner, como do convívio com suas diversas amantes. Já como residente do hospital, Bauby continua com o mesmo vício, o que motiva seu pai a cunhar o raciocínio mais saboroso do filme de Julian Schnabel. Segundo o patriarca, o filho poderia muito bem seguir com seu cotidiano de conquistas viris, sem que fosse necessário magoar Cèline, muito menos a ponto de praticamente expulsá-la de sua vida. A cortante praticidade francesa é admirável.

A maneira como o roteirista Ronald Harwood expõe o problema, cientificamente denominado como síndrome do encarceramento (isto é, um indivíduo preso em si mesmo após um evento traumático de ordem psíquica ou fisiológica), abusando não só de imagens do personagem imóvel no leito, bem como de registros em perspectiva das pessoas que o vão visitar, é um recurso eficiente quanto a exacerbar a vegetabilidade de Bauby. Antes um homem ativo, de vida borbulhante como champanhe, sedutor não só na vida sexual, Bauby é forçado a, da noite para o dia, acatar essa sua nova e incômoda existência, como a lagarta presa no casulo, dotada de todo o aparelho biológico para abandoná-lo, voar para longe e se apoderar dessa nova forma, dessa nova vida, o que jamais acontece — outra ótica para a figura da borboleta do título. Completamente alijado de qualquer autonomia, o personagem de Amalric, hábil em burilá-lo dramaticamente, não é dono sequer dos próprios pensamentos, que de uma ou maneira tem de compartilhar com Durand. Episódios de humilhação mútua, em que Cèline se presta a intérprete para a nova namorada do ex-marido é tocante — e a libido masculina chega a ser monstruosa em determinadas circunstâncias —, ao passo que o filme se permite leves pinceladas do humor involuntário de situações que tais. Schnabel remete o enredo ao tempo em que Bauby privava da companhia dos filhos, dos folguedos de alcova com a parceira, da atribulação nos dias de fechamento da revista. Pensar que tudo aquilo está morto, como ele mesmo estará não muito tempo depois, suscita na plateia uma empatia imediata e opressiva, com todos pensando “e se fosse comigo? Eu seria capaz de suportar? Não acabaria por tomar uma atitude extrema, mesmo que fosse para infligir ainda mais dor aos meus?”

O trabalho de composição e atuação de Mathieu Amalric é fundamentalmente distinto de outras performances em produções do gênero, como a de Daniel Day Lewis em “Meu Pé Esquerdo” (1989), dirigido por Jim Sheridan, sobre um homem que descobre que o dedo do pé pode ser uma ponte para o mundo além de sua cabeça, ou “Rain Man” (1988), em que Dustin Hoffman tenta não se perder de si mesmo com a chegada de um irmão que o procura movido por terceiras intenções no longa de Barry Levinson. No caso de Bauby, seu único drama é saber (ou pressentir) que não vai mesmo sair daquela prisão, por mais que goze do apoio desinteressado de todas as mulheres que o rodeiam. E isso não dói somente nele.

O nó górdio da dramaturgia de “O Escafandro e a Borboleta” é imaginar como seria sua vida se Bauby escapasse. Sua história de superação, de renovação da esperança, da crença sobrevalorizada numa recuperação fantasiosa, é interessante do ponto de vista emocional, mas cenicamente falta um pedaço. Talvez Schnabel tenha comprado cedo demais a ideia de que seu protagonista era uma espécie de super-homem, não o das histórias em quadrinhos, mas o desenhado por Nietzsche, um sujeito acima do bem e do mal, inatingível — malgrado já tivesse saído de cena, ou do centro do palco, ao menos. Mesmo seu caráter mulherengo, que larga pelo caminho um rastro de mágoas empedernidas, é desabridamente celebrado, como uma qualidade que os outros não conseguissem avaliar na devida proporção, ou um defeito que lhe dissesse respeito só a si. Fica no ar um olor de oba-oba, da permissão de tudo, talvez porque lhe faltasse Deus, ou um super ego tão poderoso quanto Ele, como aponta Dostoiévski. Nessa toada, até fica parecendo que seu calvário e morte nem foram tão sofridos assim, uma vez que bebeu da vida todos as talagadas, de todos os prazeres.

A fotografia do grande Janusz Kaminski preza os enquadramentos mais intimistas justamente para que se arrefeça um pouco da acrimônia de Bauby, sobretudo em seus instantes finais. É como se já não estivesse de todo, mais espírito que carne, se preparando para o além-vida. Essa sua contribuição para o filme de Julian Schnabel nos faz ter a certeza de que essa nossa incursão pelo mundo da matéria, desencontrada e breve, continua em algum lugar, um lugar sem escafandros, só com a beleza poética das borboletas.


Filme: O Escafandro e a Borboleta
Direção: Julian Schnabel
Ano: 2007
Gênero: Drama
Nota: 9/10
Onde assistir: Amazon Prime Video

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.