O único tapa que tomei na cara durante toda minha vida foi minha mãe quem me deu. Me acertou em cheio e foi um tapa merecido. Não doeu nada. Não me senti humilhado. Só me restou espanto e vergonha. Achei a sua reação um ato reflexo, natural e, óbvio, baixou a minha bola.
Não me lembro que idade eu tinha à época. Treze, talvez. Era o meninote bobo e arrogante de sempre. Mamãe devia contar uns quarenta e poucos anos, amassava um bolo numa grande bacia de zinco. Ficaram as marcas dos seus dedos magricelos na minha cara de aturdido. Era evidente que eu tinha extrapolado os limites. Aquele sopapo inédito guarda um gosto inesquecível de farinha de trigo. Não esperava que ela reagisse daquela forma. Ela sempre fora um docinho de gente. Não era o seu estilo bater nos filhos.
Sinceramente, não me lembro por que mamãe se ofendeu a ponto de me esbofetear. Não tive tempo, nem chance, de me esquivar. Imagino que tenha dito algo ultrajante o suficiente para tirá-la do sério. Não pensem que ela limpou as mãos no avental e foi chorar no banheiro. Não. Nada disso. Continuou muda, enfezada, a amassar o bolo com celeridade e raiva. Seria interferência das nervuras de uma menopausa que se avizinhava? Não saberia dizer.
Outro dia, conversei com ela sobre o acontecido, mas, ela disse que o episódio nunca sucedeu, que eu devia ter sonhado com aquilo, que ela não se lembrava daquele dia e que eu estava inventando história só para encher o saco. Não. Eu não estava inventando. Quem apanha nunca esquece. Ainda mais, por ter sido um baita de um sopapo. Reitero: eu mereci tomar um bofetão nas ventas.
O ato de estapear uma pessoa é gravíssimo. Um tapa na cara me parece uma agressão mais significativa do que um murro. Excetuando-se os escabrosos casos de violência doméstica contra a mulher, a bifa na cara deixa transparecer uma espécie de desabafo, uma reação à altura de uma injúria absolutamente indevida. Dentro desse contexto de mentira e de humilhação, o tapa na cara pode representar um ato reflexo compreensível, ainda que toda forma de violência deva ser rejeitada.
Há alguns anos perdi um primo de uma forma bastante patética. O sujeito gostava das lides na roça. Criava mulas. Certo dia, acabou derrubado por uma delas. Não sei se vocês sabem, mas, a maior parte das mulas age como se não tivesse cabeça. O bicho é tinhoso. São teimosas, irritadiças, imprevisíveis. O primo caiu da mula, escoriou um dos braços e deixou por isso mesmo. Pensou que o ferimento fosse coisa sem importância que cicatrizaria com cuspe e com tempo. Que nada. A ferida contaminou-se com micróbios, virou uma pústula e, depois, tornou-se um enorme abscesso que despejou enxurradas de bactérias dentro da corrente sanguínea. A sepse o dizimou mais rápido do que o evacuar de um cágado. Se existir mesmo um céu e lá houver mulas, o meu primo deve estar feliz à beça. Se bem que estou convicto de que as mulas vão para o inferno.
A única pessoa que estapeei na cara foi o primo morto pela mula sem coração. Éramos moleques. Férias escolares. Não me recordo qual o contexto da provocação. Só sei que ele me disse algo tão descabido, tão inverídico, tão humilhante, que acabei acertando a sua fuça com um tremendo tapa de mão aberta que o jogou a uns três metros de distância. Pensei que ele fosse levantar e me aplicar uma surra homérica. Era bom de briga. Só que não. Perplexo, permaneceu sentado no chão, gargalhando feito um louco. O remorso por ter batido nele dura até hoje, ainda que eu tenha me desculpado incontáveis vezes, inclusive, dentro da UTI, enquanto ele morria de septicemia. Nunca falei com barriga de gestante, mas, já conversei com gente desacordada no leito de morte. O ser humano é mesmo uma criatura bem estranha.
Recentemente, o mundo do entretenimento ficou agitado por conta de um acontecimento inédito, durante a cerimônia de premiação do Oscar 2022. O ator Will Smith subiu no palco do evento para agredir com um tapa no rosto o apresentador Cris Rock, que é ator e humorista. No início, todos imaginaram que fosse um truque, uma encenação, uma brincadeira entre os dois. Não. A porrada foi real.
Reconhecido pela agressividade subliminar, pelo rol de gafes e de piadas ofensivas, Cris Rock fez uma gozação com Jada Pinkett, esposa de Will Smith, que se encontrava ao lado dele na plateia. Cris brincou com a aparência da mulher, que raspara os cabelos por causa de uma doença denominada alopecia. A reação tosca de Will Smith provocou reações divergentes entre os seus pares e entre os fãs de cinema. Aparentemente, a maioria das pessoas concordou que ambos estavam errados.
Costumo fazer exercícios de empatia antes de emitir opiniões sobre temas polêmicos. Se estivesse na posição de Will Smith, talvez, tomasse a minha companheira pelas mãos e abandonasse imediatamente o evento. Sairíamos por cima da carne seca. Por outro lado, quem sabe, eu subisse no palco para interromper Cris Rock e fazer um breve e contundente discurso de desagravo. Bater no sujeito, ao vivo, via satélite, aos olhos de milhões de pessoas, acho que nunca o faria, por mais indignado que me sentisse.
Avalio a agressão de Will Smith como um duro sinal, um basta para quem já tinha passado dos limites da razoabilidade. Vejo o lamentável sopapo como um ato destemperado, desmedido, que acabou tirando a sua razão e ofuscando o prêmio que recebeu como Melhor Ator do Ano. Entendo a violência como uma reação abominável e animalesco. Coisas de mula, sabem como é. E olha que, de tapa na cara, eu entendo um pouquinho. Eu já estive lá, como agressor e como agredido.