“O Ataque dos Cães” é o grande perdedor da cerimônia do Oscar 2022. Indicado para 12 categorias, ganhou apenas uma, embora seja a segunda mais importante, Melhor Direção para Jane Campion. Perdeu o Oscar principal para o fofinho e esteticamente mediano “No Ritmo do Coração”. Uma injustiça histórica da Academia? Não exatamente se considerarmos o fato de que não premiar o melhor filme do ano com o prêmio de Melhor Filme do ano tornou-se uma tradição recente do Oscar. Sem dúvida, o perdedor “O Ataque dos Cães” é melhor do que nove entre os dez últimos vencedores do Oscar de Melhor Filme. O vídeo linkado prova essa afirmação. Clique para saber meus argumentos.
Esses premiados, por mais simpáticos e socialmente importantes que possam ser, não honram o legado de vencedores clássicos como “Lawrence da Arábia” e “O Poderoso Chefão”. Arte de primeira grandeza.
O cinema não surgiu como arte, surgiu como uma curiosidade científica e depois como entretenimento barato. Somente na segunda metade dos anos de 1920, o caminho para a construção da ideia de cinema como Sétima Arte estava aberto. O ato definitivo foi a fundação, em 1927, da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood e, por conseguinte, a criação, em 1929, de um prêmio aos melhores do ano: o futuro Oscar. A melhor forma de emprestar respeitabilidade a algo, o que quer que seja, é dar-lhe verniz acadêmico. Pode-se dizer que a estratégia foi bem recebida. Hoje, no ramo das artes, o Oscar só perde em importância para o Nobel de Literatura, e, mesmo assim, ainda ganha em termos de visibilidade.
Não deixa de ser sintomático, e de alguma forma irônico, que no mesmo ano de 1929 passou a vigorar uma autocensura no cinema americano. Para evitar escândalos que pudessem prejudicar seus empreendimentos, o conjunto dos estúdios criou o Código Hays, uma espécie de cartilha moralizante que definia tudo o que poderia ou não poderia entrar em um filme. De certa forma, esse moralismo voltou, com sinal trocado.
A indústria do cinema flertava com o status de arte, mas hesitava em arcar com o preço do que esse termo carrega de perigoso, contestador; preferindo cultivar seu sentido mais bucólico. Afinal, tratava-se já de uma indústria milionária, onde altas somas de dinheiro estavam em jogo. A cadeia de produção era praticamente fordista, em larguíssima escala. Para se ter uma idéia, somente o conjunto de estúdios de Hollywood colocaram no mercado exatamente 854 filmes em 1921. Ainda um recorde. Claro que da quantidade surge qualidade, mas, acima de tudo, um número tão assombroso como esse ilustra a natureza eminentemente descartável do produto. Não por acaso a grande maioria dos primeiros filmes não foram preservados. Era prática comum o reaproveitamento de celulóide. A caríssima arte cinematográfica necessitava de tais mesquinharias para conseguir sobreviver. Dinheiro sempre esteve em jogo, sempre deu o tom. Não por acaso, o nome que usualmente se dá para tal atividade, em inglês, é show business.
Muito mais do que os cineastas, os produtores, os homens do dinheiro, são o motor da indústria. Não é por acaso que o fim da cerimônia da entrega do Oscar é, normalmente, um anticlímax. Depois do desfile de celebridades lindas, carismáticas e / ou talentosas indo buscar seus troféus, fazendo seus discursos chorosos ou de protesto, em uma série de categorias menores, o prêmio de Melhor Filme é entregue a um executivo desconhecido do grande público. O verdadeiro dono da obra, da bola e da festa. Apesar de todo seu poder, ou devido a ele, os produtores sempre foram vistos pelo senso comum como mercenários sem escrúpulos, que podam a criatividade dos cineastas de acordo com seus interesses econômicos. Um tipo de Mefistófeles para o qual os artistas, os faustos, precisam vender continuamente suas almas para poderem continuar trabalhando. Pelo memos até alcançarem o status de estrelas consagradas e eles mesmos se tornarem produtores. Não há dúvidas que “No Ritmo do Coração” venceu em função de sua campanha. Os produtores venceram, não os artistas envolvidos.
Independentemente disso, a votação do Oscar é de algum modo democrática, considerando que todos os membros da Academia de Hollywood votam na categoria Melhor Filme. Se escolhas obviamente erradas acontecem, na prática, não é culpa de algoritmos de votação, como muitas vezes se justifica, mas do mais puro erro humano. O fato é que errar é humano, mas errar dez vezes seguidas só tem um nome e esse nome é impublicável.