Novo filme de Richard Linklater, na Netflix, vai te fazer sonhar acordado e melhorar o seu dia Divulgação / Netflix

Novo filme de Richard Linklater, na Netflix, vai te fazer sonhar acordado e melhorar o seu dia

Richard Linklater pautou sua carreira pela superação de desafios. Ninguém jamais pensou em compor um registro, usando o mesmo elenco, sobre o processo de amadurecimento de um garoto. Para Linkater, não só era possível como desejável: “Boyhood — Da Infância à Juventude” (2014) tornou-se uma das produções que mais demorou para ser concluída, justamente por ter se submeter a uma condição que não admite cerceamentos de nenhuma espécie: o passar do tempo. Oito anos depois, “Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial” também se volta para os prazeres e as angústias de crescer, valendo-se de expediente da mesma forma insólito. Falando-se deste trabalho, o diretor desdobra-se sobre o cotidiano de Stan, dublado por Jack Black quando adulto, aluno da quarta série arregimentado por dois agentes secretos do FBI para uma missão fora na Terra. É tudo muito estranho uma vez que Stan nem é um aluno tão bom assim em matemática. Mas Linkater não deixa a peteca cair. Até meio bobo no início, o filme cresce na exata proporção em que Stan toma forma na narrativa e a assume sem subterfúgios.

“Waking Life”, por seu turno, não pode ser esquecido quanto a compreender-se as intenções de “Apollo 10 e Meio”. No filme de 2001, o jovem protagonista divaga sobre os muitos estados da consciência humana, além de discutir acerca de filosofia, religião e política — alguns dos muitos assuntos em que o diretor continua a meter sua colher. A diferença fundamental entre um e outro é que aquele não é um filme real, mas cenas, paisagens e atores que foram coloridos, redesenhados e tiveram a imagem refeita graças a um software desenvolvido em parceria com sua equipe, exatamente como acontece ao longo da feitura de um desenho animado. Em seu novo trabalho, Linklater emprega o mesmo expediente para narrar o cotidiano de uma família americana de classe média no final dos anos 1960 no subúrbio da maior cidade do Texas, estado conhecido pelo rigor de sua gente, irrigado artificialmente pelo dinheiro da NASA, a agência espacial americana, que desenvolve uma de suas fases diante da irrequietude da população. O roteiro de Linklater coloca todas as informações de destaque na boca de seu personagem central, com a hegemonia do texto sobre a imagem.

Esse narrador onisciente, onipresente e onipotente, que sabe de tudo o que se passa a sua volta, perpassa momentos distintos da história ao mesmo tempo e pode não só interferir em seu curso como promover-lhe mudanças radicais, é o grande personagem do filme e só se tomado sob seu ponto de vista o enredo faz sentido. “Apollo 10 e Meio” se presta à natureza de um álbum de recordações de Stan, homem feito que rememora a infância, o lugarzinho mágico para onde o adulto se transporta quando necessita preservar-se da opressão do mundo, pulsante nele. Suas reminiscências de garoto redundam em cenas em que o diretor, ele próprio uma criança dos anos 1960, se esmera em relembrar ao público que partilhou com ele seus verdes anos o valor sentimental que eventos históricos e produtos da indústria cultural que marcaram época, aproveitando para açular nos mais jovens esse interesse. E esse é um cardápio assaz variado, em que entram desde a série “Dark Shadows” (1966), levada ao ar pela ABC, e videoteipes de entrevistas de Janis Joplin (1943-1970) a Dick Cavett, a “No Assombroso Mundo da Lua” (1967), a delirante aventura espacial de Robert Altman. Linklater aproveita esse gancho para se aprofundar nas discussões políticas que monopolizavam as atenções nos Estados Unidos há mais de 50 anos, a exemplo da contraposição entre a cobertura propositalmente escassa da Guerra do Vietnã (1955-1975) e o escarcéu acerca da ida do homem à Lua, na noite de 20 de julho de 1969. Na esteira de demandas por engajamento filosófico e artístico e, claro, militância política, os movimentos feministas e o Black Power, em defesa do cidadão afro-americano, também surgem no trabalho do diretor.

“Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial” tem um andamento próprio, e não adianta querer subjugá-lo. Não obstante a pouca idade — os dez (anos) e meio do título —, seu protagonista é um contador de histórias de mão cheia, espantosamente atento e perspicaz em se tratando de uma criança, dizendo as coisas imprescindíveis de se dizer num cenário de escalada do individualismo, da truculência, do American way of life que segrega ainda mais brancos e negros e faz destes homens de segunda classe. Stan poderia ter nascido no Texas, na Argélia, no Vietnã ou no Brasil; poderia ser milionário ou um indigente; poderia até ser mesmo só um delírio de Richard Linklater, fosse o mundo um éden na Terra. Exatamente porque a vida como ela é pouco tem de poética, é que Linklater conseguiu fazer de mais esse filme um sonho. E só pela coragem do propósito e da genialidade da ideia seu filme já merece atenção redobrada.


Filme: Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial
Direção: Richard Linklater
Ano: 2022
Gêneros: Ficção científica/Coming-of-age
Nota: 9/10