Um pouco de ciúme até pode ser benéfico numa relação. Todos temos nossas fraquezas, nossas inseguranças, a necessidade de nos sentirmos verdadeiramente amados, se não na mesma medida das nossas altíssimas expectativas e do nosso empenho absoluto ao outro, pelo menos numa proporção que nos permita tocar a vida no intervalo entre um e outro encontro com a pessoa amada. Contudo, não raro a vontade de experimentar o pulso do sentimento por parte de quem se ama sai do controle, e sem que percebamos — ou sem que tenhamos a coragem de assumir —, nos tornamos escravos do ciúme, um senhor que exige cada vez mais dedicação, sugando-nos as forças, apartando-nos daquele amor tão pleno de encantos do início, nos arrastando para um turbilhão de loucura, selvageria e morte. Se é mesmo verdade que os brutos também amam, resta saber qual a genuína natureza desse amor. Ninguém pode querer definir o modo certo de se amar e cada um tem o seu jeito meio estúpido de ser e de manifestar o amor, mas qualquer um é capaz de concluir que quando o mais humano dos sentimentos se subverte num gatilho para a simples psicopatia.
“Touro Indomável” não é uma história sobre lutadores que beijam a lona, quebram a cara, literal e metaforicamente, treinam pesado mesmo sentindo dor, mas como semideuses, passam por cima de todas as dificuldades, e chegam ao Olimpo da vitória. Há o boxe em “Touro Indomável”, por óbvio, mas o filme de Martin Scorsese vai muito além da narrativa do esportista devastado por dramas de consciência de toda ordem. O roteiro de Scorsese, Mardik Martin (1934-2019) e Paul Schrader não se preocupa em enaltecer essa ou aquela técnica de luta e acertadamente se concentra na forma como seu protagonista entende a vida e o sentimento romântico, necessariamente etapas de um combate em que só existe lugar para um único campeão.
O Jake LaMotta eternizado por Robert De Niro é uma fera acuada por seus próprios medos, e logo no início do filme, Scorsese faz questão de apresentar o personagem como é. Tomado por um impulso bestial depois que a esposa, Vickie, comete a inconfidência de achar bonito um de seus adversários, durante a luta, ele parte para cima do homem sem dó, a ponto do infeliz ficar irreconhecível. Na platéia, um chefe da máfia chega a admirar a valentia de fera silvestre de LaMotta, que ainda no ringue fita a mulher, vivida por Cathy Moriarty, paralisada num misto de resignação e pavor. Em 1980, quando o filme foi lançado, já se levantavam os pleitos justos da mulher por valorização junto ao mercado de trabalho, ao passo que pautas de comportamento como assédio sexual, abuso psicológico e violência doméstica esperavam a sua vez, e o movimento feminista foi, é forçoso dizê-lo, contraproducente ao pensar a condição feminina em gavetas, distinguir a mulher profissional da mulher gente, também cheia de vulnerabilidades como o homem, com a diferença de não encontrarem acolhida no espaço público. Se tivesse sido filmado hoje, se o argumento e a forma de materializá-lo houvessem conseguido passar pelo crivo do politicamente correto — uma praga que segue sua marcha quanto a atingir todos os setores da sociedade, estúdios e emissoras de televisão inclusive (ou principalmente) —, decerto “Touro Indomável” não teria sido escolhido o melhor filme da década, ainda incipiente, mas cancelado ainda na primeira semana de exibição. Que falta faz um Voltaire.
Inspirado pela autobiografia de Jake LaMotta (1922-2017), “Raging Bull: My Story” (1970), leitura que partilhava com De Niro, os dois acabaram levando a Paul Schrader a ideia de filmar a história do pugilista, que com Sugar Ray Robinson (1921-1989) oferecia à audiência verdadeiros espetáculos em louvor à virilidade durante os anos 1940 e 1950. Schrader, autor de “Taxi Driver” (1976), aceitou a encomenda, mas a empreitada fez água: a dupla estava ocupada demais tratando de inflar seu ego com “New York, New York” (1977). Algum tempo depois, quando Scorsese começou a manifestar sinais de que seu vício em cocaína o faria ter de jogar a toalha, a da carreira e da vida, De Niro implorou para que, primeiro, o amigo tomasse jeito e, em seguida, retomassem “Touro Indomável”, cujo texto fora decentemente burilado por Mardik, roteirista de “Caminhos Perigosos” (1973). O resto é história, e uma história gloriosa: o longa levou o Oscar de Melhor Ator para De Niro e Melhor Montagem para Thelma Schoonmaker, além de ter sido lembrado pela Academia de Hollywood pelos trabalhos de Joe Pesci, indicado ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante por Joey, o irmão do protagonista; Moriarty, ao de Melhor Atriz; e o próprio Scorsese, que disputou a estatueta de Melhor Diretor. Outra categoria técnica, a de Melhor Som, também esteve na mira, e a indicação a Melhor Filme foi perdida para “Gente como a Gente” (1980), mas, com todo o respeito a Robert Redford, foi “Touro Indomável” quem arrebatou a opinião pública e foi integralmente aceito e absorvido pela cultura pop.
Remontando a clássicos da literatura como “Dom Casmurro” (1899), romance de Machado de Assis (1839-1908), e “Otelo, o Mouro de Veneza” (1622), peça de William Shakespeare (1564-1616), Scorsese também coloca seu protagonista no centro de uma polêmica tão velha quanto potente. Ao passo que não consegue se persuadir de que Vickie lhe é fiel, LaMotta se envenena a si mesmo com suas suspeitas paranoicas, valendo-se do ambiente extremamente belicoso de seu ofício à guisa de terapia. Para o lutador, a mulher reúne em si condições paradoxais o bastante para que seja a um só tempo criaturas virginais, inacessíveis, quase sagradas, mas que mesmo assim (ou por isso mesmo) despertam o desejo masculino, que uma vez realizado as conspurca para sempre. Com efeito, não é a esposa que LaMotta rejeita, mas a si mesmo, por se sentir tão atraído por alguém que deveria venerar, mas como uma santa, o que Freud sagazmente classificou como complexo de Madonna-prostituta.
Filmado em preto-e-branco, uma decisão perspicaz e de elevado valor artístico de Michael Chapman quanto a minimizar o choque de espectadores mais impressionáveis com todo o sangue que jorra dos corpos dos pugilistas, “Touro Indomável” é uma ode ao mais nobre e ao mais pedestre no homem. Tentativa de explicar, sem proselitismo de nenhum jaez, a insegurança de certos homens frente a mulheres bonitas, que comumente também se tornam autônomas, sem tampouco parecer se dedicar a elaborar uma possível justificativa para a violência que degringola dessa postura, Martin Scorsese faz de seu filme, a seu talante, um postulado em defesa da igualdade de gênero num tempo em que nem se sonhava com isso. O Jake LaMotta de Robert De Niro bate muito, todavia apanha na mesma proporção, porque incapaz de se defender de si mesmo. Sua desgraça fundamental é que sua dor é o que se há de mais valioso em si.
Filme: Touro Indomável
Direção: Martin Scorsese
Ano: 1980
Gênero: Drama
Nota: 10/10