Inacreditável e perverso, filme na Netflix é uma obra-prima em que até as cenas mais previsíveis te darão um soco Divulgação / DreamWorks

Inacreditável e perverso, filme na Netflix é uma obra-prima em que até as cenas mais previsíveis te darão um soco

Não se consegue chegar a um veredito sobre o que é “Colateral” (2004) de imediato. O filme de Michael Mann começa insinuando uma situação de um descompasso qualquer no momento em  que Vincent, o personagem de Tom Cruise, deixa o aeroporto de Los Angeles e aproveita para trocar sua maleta com a de outra pessoa no saguão. Na sequência, Max Durocher, o taxista boa-praça vivido por Jamie Foxx, aceita Annie, de Jada Pinkett Smith, como passageira. Tem início um diálogo entre amistoso e desconfiado, em que os dois debatem sobre que caminho o motorista deve tomar a fim de chegar mais depressa ao destino de sua cliente, um prédio de escritórios no centro de Los Angeles. Max e Annie fazem uma aposta: caso não cheguem em determinado prazo, a corrida fica por conta da casa — ainda que o roteiro de Stuart Beattie dê uma barrigada e não apresente o contraponto da personagem de Pinkett Smith à oferta do condutor. O percurso de Max é mesmo mais fluido do que Annie imaginara, ou seja, ela chega antes do que previa e ainda poupa alguns dólares.

Malgrado o pequeno descuido de Beattie, sua estratégia de tapear o espectador e apresentar “Colateral” com cenas que aludem a um romance, quiçá uma comédia romântica ou quem sabe um drama, surte efeito, principalmente na construção de Max. Com muito jeito, o chofer vai levando sua passageira no bico; os dois se abrem, logo já estão sabendo detalhes insólitos da vida um do outro. Ela diz a ele que é procuradora do Ministério Público, à véspera de um julgamento importante; Max, por seu turno, revela a Annie que apesar de dirigir profissionalmente há doze anos, quer mesmo é abrir uma empresa de passeios turísticos, com sua própria frota de limusines. Talvez nasça uma grande paixão entre esses tipos carismáticos e inofensivos, talvez nunca mais se vejam — e essa segunda hipótese seria a única, uma vez que, por alguma razão, decerto por achá-la muita areia para a sua caçamba, ele não ousa pedir o telefone da moça. Quase se pode ouvi-lo se lamentar, julgar-se um pobre-diabo, vítima do mundo, quando Annie bate à janela do carro e lhe entrega seu cartão de visita, um dos elementos que situam o filme no tempo, tempo de muito mais elegância.

Depois dessa verdadeira demonstração de empoderamento feminino, o filme de Mann retoma seu curso. Pinkett Smith e Cruise voltam a trocar de lugar, e Vincent reassume o primeiro plano, descendo de uma escadaria com Annie ao fundo, subindo. Max também continua na história, cada vez mais fortemente, e quem duvidava de que Foxx tivesse cacife para um papel que se vai revelando tão denso, tão complexo, tão cheio de penumbras, quebra a cara. Vincent, o homem da mala, entra no carro de Max, e como se dera com Annie, os dois conversam amenidades. Até que o papo vai ficando esquisito: o passageiro, aparentemente um homem distinto, envergando um terno bem cortado, cabelo precocemente grisalho, que se porta com a verdadeira educação de um sujeito bem-criado, sempre emoldurada por um sorriso espontâneo, propõe a Max que dirija para ele ao longo da noite, a seiscentos dólares. O taxista parece inclinado a aceitar, mas está estampada em sua expressão que considera aquele um negócio de alto risco. Eles acabam se entendendo e o que parecia um golpe de sorte na dureza da vida de Max se revela mesmo mais uma das trapaças do destino. Logo depois, a primeira reviravolta da trama desaba sobre ele, e a partir daí sua vida se resume a tentar prever os próximos movimentos de seu cliente, tão perdido quanto Seth e Richard, os irmãos delinquentes de “Um Drink no Inferno” (1996), de Robert Rodríguez.

Mann tem destreza ao desenvolver o conflito que se abate sobre seu protagonista, subitamente iludido por um antagonista que se vende como bom moço, mas que não hesitaria um segundo em incluí-lo em sua lista de tarefas. Ninguém melhor para a empreitada que Cruise, um ator dinâmico, nada acomodado, sempre disposto a emprestar seu excelente condicionamento físico a seus personagens — sempre há uma sequência envolvendo corridas reservada para Cruise, além das escaladas, saltos no vazio, brigas homéricas, conforme registram as produções da franquia “Missão: Impossível”, especialmente “Efeito Fallout” (2018), levado à tela por Christopher McQuarrie —, sem prejuízo do aspecto mais cerebral da história. Da mesma forma acontece com Foxx, a pouco menos de três meses de incorporar o papel de sua vida em “Ray” (2004), drama sobre o músico Ray Charles (1930-2004), de Taylor Hackford, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Ator. A comovente ingenuidade de Max, que acredita que Vincent vai cair em si e livrá-lo do torvelinho de desordem para o qual o puxou, se estende até o episódio na boate de Daniel, vivido por Barry Shabaka Henley, onde o vilão de Cruise e o tipo nebuloso de Shabaka Henley trocam impressões sobre jazz e Miles Davis (1926-1991), uma de suas grandes lendas e, segundo o empresário, ex-frequentador do clube noturno quando Daniel era ainda só o faxineiro — aliás, há aqui uma piada metalinguística saborosa acerca das preferências musicais de Max, que ouve calado a conversa dos outros dois. Ao perceber que Daniel o engana, Vincent toma providências, da única maneira que sabe. Só então o personagem de Foxx se dá conta de que está mesmo nas mãos perigosas de Vincent, um manipulador sagaz das emoções humanas que dá um baile na polícia, representada pelo detetive Ray Fanning, de Mark Ruffalo.

A visita de Vincent e Max a Ida, a mãe do taxista interpretada por Irma P. Hall, degringola a terceira guinada da narrativa, que termina na passagem bem elaborada em que Max se passa por Vincent, sem despertar suspeitas em Félix, o mafioso que contratara os serviços do algoz do motorista, uma participação dispensável de Javier Bardem. Max, valendo-se de sua lábia poderosa, engana o gângster, se permitindo até algumas ousadias, como provocar os capangas de Félix. Quando estão outra vez no mesmo quadro, Cruise e Foxx reposicionam “Colateral” em seu eixo, e resta provado que as duas horas do filme poderiam ser só deles, com a oportuna e cálida presença de Pinkett Smith no introito acolhedor, refeito no desfecho num outro diapasão.

Junto com uma sensação de benfazeja nostalgia, “Colateral” deixa o indício de uma das escalações mais felizes do cinema. Jovens, bonitos e talentosos, Tom Cruise, Jamie Foxx e Jada Pinkett Smith, nessa ordem, tiraram de letra todas as suspeitas que o público, a crítica, o próprio Michael Mann tinham a seu respeito e entregaram um trabalho admiravelmente coeso, emotivo, preciso, humano. O verdadeiro caso aqui é entre dois homens, cada um pleno de suas convicções sobre como quer viver, com espaço para uma mulher, que se valoriza e vai além da superfície do que pode ver nos outros. Talvez filmes como esses estejam relegados a permanecer nas catacumbas sabe-se lá por mais quanto tempo.


Filme: Colateral
Direção: Michael Mann
Ano: 2004
Gênero: Drama/Suspense/Noir/Ação
Nota: 9/10