Excêntrico, novo filme argentino da Netflix fará você reavaliar sua vida na busca pela felicidade

Excêntrico, novo filme argentino da Netflix fará você reavaliar sua vida na busca pela felicidade

Ser querido, mimado, adorado, venerado pode ter seu lado ruim. Às vezes, subimos tão alto que temos a impressão de que ninguém jamais poderá nos tirar do pedestal em que nos colocamos. Bobagem grossa: chegar tão perto do céu pode acabar nos dando a ideia errada de que somos deuses, e quanto maior a altura, mais difícil a descida — e mais dolorido o tombo. E tanto pior se presenciado por uma cidade inteira, impulsionado pela força brutal da televisão. Com seus programas idiotas sobre qualquer coisa, de barracos conjugais a pescaria, passando por culinária e o famigerado futebol e suas intragáveis mesas redondas, tem-se de tudo nas emissoras de televisão do mundo todo. Na quase totalidade dos casos, essas “atrações” só permanecem no ar por uma ou duas décadas (e contando) graças ao carisma hipnótico do apresentador, uma espécie de mago da idade contemporânea, que medeia as demandas do homem comum junto àquele estrato privilegiado da humanidade chamado políticos, ou nos dá a falsa sensação de que atores da novela do horário nobre estão a um clique de nossa vã mortalidade.

É o que acontece com Miguel Flores. O âncora de um show televisivo levado ao ar recentemente, cujo principal assunto é a previsão do tempo, Flores se sai muito bem na função que escolhe desempenhar. O personagem de Guillermo Francella, protagonista da comédia dramática argentina “Granizo” (2022), de Marcos Carnevale, está no auge. Formado em ciências atmosféricas, o novo astro da telinha não aceita ser tomado por um charlatão qualquer. Em vinte anos trabalhando com previsão das condições climáticas para as próximas horas, Flores nunca errou um de seus muitos vaticínios, razão pela qual tem uma legião de fãs — ainda que seja solenemente ignorado por boa parte das pessoas, inclusive pelos taxistas, esses oráculos da pós-modernidade, e, sobretudo, pelos mais jovens, que detestam televisão e nem sentem o dia passar se pendurados no telefone, um comentário de mordacidade precisa do diretor. A confluência de mídias enunciada pelo historiador inglês Peter Burke parece ter feito água, mas nem tudo está perdido para esse cientista tão maluco quanto charmoso, que consegue fazer de suas deficiências um trampolim para a conquistas de objetivos maiores, o que o trouxera até o Olimpo a que chegou. Capaz de prever com exatidão se chove ou faz sol — o que impacta de maneira decisiva o cotidiano de muita gente, desde donas de casa simples, que precisam saber se é viável estender suas roupas no varal, a megaempresários como empreiteiros da construção civil, que perdem uma fábula de dinheiro adiando projetos por causa das chuvas incessantes —, Flores é o Infalível, até que mesmo ele experimenta a reviravolta que sacode a história, nada tão assombrosamente criativo, mas bem encaminhado no roteiro de Fernando Balmayor e Nicolás Giacobone.

Tudo corre bem na noite de estreia, em que divide os holofotes com Mery Oliva, a celebridade das redes sociais vivida por Laura Fernández, e seu cãozinho chihuahua Simón. O problema é o day after: como nos filmes de catástrofes pós-apocalípticas, Flores se depara com o cenário de terra arrasada da noite anterior, tudo por conta da tempestade que despencara sobre Buenos Aires, com direito a precipitação de pedras de gelo e tudo. A devastação causada pela tormenta, com casas alagadas, carros esmagados sob o peso de árvores que não aguentaram a força da ventania e tombaram, e até a morte do cachorro de um vizinho recaem sobre a responsabilidade desse pop star meio involuntário, que agora terá de descobrir um meio de lidar com a rejeição maciça de todos, inclusive de Luis, o taxista que enfrenta a chacota dos colegas e a marcação cerrada da mulher em defesa de seu ídolo — mesmo que os glóbulos de granizo, pesados o bastante para avariar a lataria do carro, largado na rua durante a madrugada, ainda lhe provoquem pesadelos, motivados pelo fato do seguro não cobrir eventos dessa natureza. Quanto ao decaído Miguel Flores, a única alternativa razoável que lhe ocorre é parar as máquinas e correr para a casa da filha Carla, de Romina Fernandes, na província de Córdoba, nos pampas argentinos, e pensar numa maneira de se redimir. Esse processo desencadeia no personagem de Francella uma série de questionamentos, sobre, por exemplo, se conduziu sua carreira como deveria ou se permitiu tomar, ingenuamente, estupidamente, pela vaidade, principalmente depois que a fama na televisão lhe facultou estrear seu próprio programa.

O cinema, como a arte em geral, reflete o tempo em que se insere. Em sendo assim, “Granizo” é pródigo de discussões sobre a nefasta cultura do cancelamento, a responsabilidade de cada um quanto ao modo como leva sua vida pessoal e seu trabalho, e nesse particular, no caso do protagonista, o caráter de pouca segurança do showbusiness. Comédia freak e quase absurda, nada convencional e ainda menos linear, o filme de Carnevale é um enredo aparentemente monolítico, mas que o diretor mostra-se competente em desbastar em finas camadas, até que se chegue ao núcleo, qual seja, o sucesso e o fracasso de um homem que, como qualquer pessoa, almeja o primeiro, conquista-o, vicia-se nessa ilusão de que o reconhecimento profissional supre carências de outras ordens e elimina desvios de personalidade mortíferos para a convivência com os demais e termina por enfrentar uma dificuldade sobre-humana para superar episódios de desacertos, quando tudo nem deveria ser tão traumático assim.

Dispondo de um personagem central cujo  carisma se replica em seu intérprete e vice-versa, num movimento orgânico que enriquece muito o trabalho de Francella,  “Granizo” soa como uma reedição dos clássicos cult dos anos 1990 protagonizados por Jim Carrey, como “O Máskara” (1994), dirigido por Chuck Russell, e “O Mentiroso” (1997), de Tom Shadyac, em que um indivíduo com óbvios problemas de autoestima lança mão de expedientes grandiosos para aparecer cada vez mais, até que perde o controle e é forçado a recalcular a rota. É leve, ao mesmo tempo em que não se furta a pelo menos chacoalhar algumas certezas do espectador. Mormente dos mais vaidosos.


Filme: Granizo
Direção:
Marcos Carnevale
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10