Notas sobre o caso Will Smith, a palavra podre e os cyber-gladiadores

Notas sobre o caso Will Smith, a palavra podre e os cyber-gladiadores

Nas cerimônias da premiação do Oscar, até as piadas são ensaiadas. O apresentador faz elogios à indústria de cinema e brinca com colegas de profissão. Uma apoteose do nada, ao estilo das comédias de stand-up. Mas podem surgir surpresas. Neste ano, o comediante e mestre de cerimônias Chris Rock decidiu fazer ou interpretar um texto que zombava da esposa do ator Will Smith (Jada Pinkett), portadora de uma condição física que leva à perda de cabelos. A reação de Will é conhecida e inundou a internet.

A bofetada em Rock foi, sem dúvida, um revide inesperado. Chamou um pouco menos a atenção a fala de Will: “Mantenha o nome da minha esposa fora da sua boca!”. Bem ao gosto dos tempos atuais, Chris Rock ganhou a vida por ter uma boca que emite jatos de barbaridades. Trata-se do humor que se diz “politicamente incorreto”. Problema: esse verbo se coloca a serviço de ataques violentíssimos, sob o pretexto de piadas, como a dita por um homem para rir de uma mulher e monetizar com a doença dela.

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O que Chris Rock disse na festa do Oscar, se enquadra bem numa definição recentemente dada por Renato Lessa. O pensador brasileiro notou a recorrência da “palavra podre” no espaço público. A linguagem é destruída e usada para a destruição. Como o ser humano é um animal que fala e constrói realidades a partir do que sai de sua boca, a “palavra podre” pode ser considerada uma arma de extermínio. Esse fenômeno da podridão está presente sobretudo na mídia do entretenimento e das redes sociais. Diz Lessa: “Embora se mova no interior da dimensão tácita, ou seja, dentro dos limites compartilhados por todos, a linguagem pode dar passagem e abrigo a um ato de fala que destrói esses limites e todo o ambiente semântico sobre o qual incide: a palavra podre. Esta se faz protótipo de novos hábitos, quando não do hábito de destruir hábitos. É pela palavra que a coisa — a destruição — vem. O sujeito que emite a palavra podre, mais do que algoz da gramática, é inimigo da semântica e da forma de vida a ela associada”.

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A ideia da “palavra podre” é esclarecedora para o Brasil — caso olhemos para situações concretas ao nosso lado. Interessante que o vômito verbal virou um instrumento de luta, disputas, numa sociedade (a brasileira) que se tornou justamente referência global de outro fenômeno: lutas esportivas do tipo MMA e UFC. Violência em cima de violência.

Uma luta que mistura várias lutas é um esporte bem adequado à situação do país que perdeu sua forma nas últimas décadas. A barbárie acaba sendo transmitida pela televisão, com direito a imagens de fraturas expostas e rostos disformes. Nada da grande arte do boxe norte-americano e cubano ou do balé dos orientais que disseminam pitadas de filosofia em meios aos estrangulamentos e chutes. Tão afeito ao vale-tudo cotidiano, o Brasil virou celeiro da luta sem regras.

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A novidade: o padrão MMA transbordou para fora dos ginásios onde ocorrem as lutas em palcos no formato de octógono. Um polígono de oito lados delimita o espaço que aceita tudo, até o momento que um dos participantes não suporte mais os ferimentos ou frature uma perna. Marcos Nobre tem usado a imagem do octógono para interpretar a situação brasileira, uma vez que se percebe o estilo “ultimate fighting” indo para o debate público e para diversas áreas da indústria da cultura.

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Para verificar a hipótese, basta pegar um dia qualquer e abrir as redes sociais. É possível ver, por exemplo, que um podcaster da moda defendeu a existência de um partido nazista no Brasil e o direito de ser antissemita. No mesmo programa, o jovem político avaliou que foi um erro a Alemanha criminalizar o nazismo após a Segunda Guerra Mundial. A intenção dos dois era o nocaute da interlocutora (uma jovem deputada). No estúdio do podcast, o octógono é a mesa para a luta verbal, à base de palavras apodrecidas.

Dias antes, as redes sociais se mobilizaram para mais uma luta pela morte simbólica de uma pessoa. Chico Buarque estava novamente no alvo. O tímido e recluso músico não pode abrir a boca para se manifestar. A última declaração dele foi a de que não cantaria mais uma música por considerá-la ultrapassada. E quando Chico se manifesta para além das canções (dando entrevistas ou escrevendo ficção), surgem os “cyber-gladiadores” para provar que o Brasil é uma terra sem açúcar e sem afeto.

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A expressão “cyber-gladiadores” vem bem a calhar. Foi criada pela crítica argentina Beatriz Sarlo, que analisou a entrada da política partidária do seu país para as redes sociais. Perfis masculinos, na grande maioria, passam a usar a internet como uma arena de lutas de morte e sem regras definidas. Aparece de novo a imagem do espaço da hiper-violência onde, ao contrário, deveríamos ter a discussão racional. Na verdade, a nova praça pública, a ágora ateniense moderna, é um octógono com a palavra podre.

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Como se chegou ao Brasil-octógono e da palavra podre? O país nasceu da violência — isso é conhecido, bastando abrir qualquer livro de História. Mas uma hipótese razoável é que a degradação do debate público partiu do ultraconservadorismo nos anos 1990. Esse grupo não queria mais usar a língua comum da conversa. Era necessário levar tudo para uma discussão com palavrões (a palavra podre) e ataques pessoais. A morte recente de um dos seus líderes, uma espécie de Minotauro das ideias, exibiu o show de linchamento virtual, tantas vezes praticado por ele mesmo.

Na indústria da cultura, outra fonte da degradação são, sem dúvida, os reality shows. A cada semana, o público define uma eliminação e pratica a morte simbólica de alguém. Um “ritual de sofrimento”, como definiu Sílvia Vianna. Num desses programas atuais, a reclamação é a falta de brigas entre os participantes na mais recente edição. É como se espectadores quisessem toda noite, ou a cada minuto, ver a imagem da perna quebrada do lutador Anderson Silva — a cena horrível da fratura na luta de 2013.

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Parece que hoje a palavra deve ser orientada para o vale-tudo diário. Só assim é permitida a entrada no debate público. Prevalece a violência crua e em tempo real, sobretudo pelas redes sociais. Cria-se a regra: apenas vale a pena debater e conversar se um dos lados puder quebrar a perna, desfigurar o rosto do oponente e soltar um bafo apodrecido em meio a discursos. Por essas e outras, o “espírito do tempo” do Brasil se materializa no octógono de MMA e nas palavras podres.