Em nome do amor — ou do que se acredita que seja amor, e, principalmente, do que se espera que ele seja —, a alma humana se entrega a toda sorte de martírios. Manifestações artísticas se constituem por natureza numa ponte — do homem para consigo mesmo, para com o outro, para com a existência, para com Deus —, ao mesmo tempo que reflete o que se passa na sociedade, catalisa esse movimento e corrompe o processo na medida em que identifica deficiências na elaboração do sentimento. A arte em suas mais distintas apresentações ressignifica a experiência do gênero humano sobre a Terra, dando novos sentidos ao que o homem consegue absorver do mundo, de si mesmo e do outro, e fazê-lo chegar a alguma conclusão sobre em que proporção a realidade paralela que muitas vezes erige em torno de si movido pelo sentimento amoroso é perigosa, porque ela sempre oculta algum risco. Do dia para a noite, podemos ser tomados por uma força espantosamente austera, com a qual não sabemos lidar, que nos impele à autodestruição se dotada de carga unidirecional, isto é, que sai de nós e nunca nos regressa. Desde o princípio dos tempos, a arte nos alerta que amar pode ser nocivo.
A Garota Húngara (2015), disponível gratuitamente na Netmovies se presta a uma reflexão acerca dos ardis do amor, e em especial da paixão — e refinando-se o corte um pouco mais ainda, da paixão frustrada —, sem renunciar à sensualidade. O filme de Attila Szász é uma revoada confusa de emoções a trovejar na cabeça e na alma de três personagens femininas, e se o pensamento da mulher é muitas vezes um terreno ou excessivamente árido, fruto das decepções nascidas de ideias românticas demais sobre um mundo que não as merece, ou bastante luminoso, a ponto de nos cegar a nós que tentamos explorá-lo, seu espírito é mil vezes mais complexo. Cabe a quem se aventura a vencê-lo, a começar pelo diretor, desvendar o que é matéria e o que é simples fulgor em seres frágeis, mas do mesmo modo perversos, tocados em suas muitas suscetibilidades de jeitos diferentes e que tentam, acertando e errando, adaptar-se às novas conjunturas da vida.
A história levada por Szász se passa na década de 1910, quando Elza Mágnás, a cortesã mais famosa de Budapeste, rouba corações masculinos e os destroça impunemente. Mágnás, vivida por uma Patrícia Kovacs que sabe decifrar os tons plurais da personagem, teve sucesso em seu ofício: Max Schmidt, o magnata da indústria moveleira interpretado por János Kulka, lambe o chão a que a ex-prostituta pisa, e embora pareça se incomodar muito com a evidência inescapável de que a amante mantém outras companhias masculinas no cardápio, não é capaz de abandoná-la. Kulka oferece um contraponto maduro e sólido à personalidade um tanto infantil de sua favorita, mas Schmidt acaba por se deixar subverter pela leviandade de Mágnás, tornando-se algo entre um escravo e um bicho de estimação seu, mas não é o único. Sóvágó Gergely, aspirante a poeta e um tipo romântico e vulnerável, também é enredado pelas manhas da amante pública do empresário, que cede aos apelos do personagem de Péter Sándor e aceita fugir para os Estados Unidos com ele.
Junte-se ao imbróglio, elaborado com requinte no texto de Szász e Norbert Köbli, a governanta de Mágnás, Kóbori Rózsi, que conforme a história toma corpo deixa patente que alimenta em si ilusões inalcançáveis sobre a patroa, e Szebeni Katò, de Laura Dobrosi, a empregada que começa a dar expediente na mansão. Rózsi, a melhor coisa do longa, além de ser forçada a ter uma vida tão calculada que nem parece de verdade, agora é confrontada com suas fraquezas na juventude despretensiosa de Katò, que a agride. Nessas passagens, Dorka Gryllus, uma das mais completas atrizes da sua geração na Hungria, enaltece a melancolia essencial de sua personagem, que jamais se livrara da sombra da mulher a quem dedica a vida. E sua mágoa recrudesce ao notar que Katò torna-se a predileta da anfitriã.
Em “A Favorita” (2018), Yorgos Lanthimos usou argumento semelhante para falar do vínculo entre três mulheres, uma exercendo sobre as outras duas um poder verdadeiramente imperial, absorvido de maneiras opostas. Aqui, Szász mostra seu trio de protagonistas em situação parecida, ainda que a carga sexual apenas se insinue. Katò se empenha em preservar-se casta, malgrado a influência nefanda da personagem de Kovacs tente a todo custo persuadi-la de que, cedo ou tarde, terá de “abrir as pernas” caso queira uma vida digna — e eis aí o ponto em que o entendimento sobre o que é o mundo, a vida e a condição da mulher no princípio do século 20 se chocam. Mágnás, tão competente na arte de iludir que consegue arrancar de Schmidt cem mil dólares que diz querer investir no sonho de fazer um filme sobre a vida de Joana d’Arc (1412-1431) — sendo que a heroína francesa durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) foi queimada na fogueira ainda adolescente, e ela era já uma jovem senhora —, dinheiro que usaria para ir-se embora com Gergely para a América, o que também não faz, e lança-o numa agonia definitiva, nao e capaz de seduzir a criada, e isso mais que a intriga, a embrutece. Desse ponto em diante, Szász reforça a aura sombria de sua narrativa, tendo por amparo a fotografia muitos tons abaixo da superfície do real de András Nagy.
Lembrança de uma personagem atormentada pela própria feminilidade, “A Garota Húngara” passaria apenas por um thriller que deixa subentendido que as relações entre homens e mulheres serão sempre conturbadas, por mais evoluído que se anuncie o mundo, mas sua coragem o torna maior no instante em que encampa a ideia de que há almas femininas tão pouco dotadas de beleza, de retidão, da própria humanidade que parecem só espectros, rondando homens (que não são imaculados) e desvirtuando outras mulheres menos vis. Attila Szász decerto teve de dar algumas satisfações a respeito do que teria querido dizer exatamente com seu trabalho, o que não deixa de ser um ótimo sinal no mundo bestializado por uma horda de pilantras candidatos a messias, tenham o gênero que tiverem.
Filme: A Garota Húngara
Direção: Attila Szász
Ano: 2015
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 9/10