Detonado pela crítica e amado pelo público, filme de Will Smith na Netflix é um tapa na cara

Detonado pela crítica e amado pelo público, filme de Will Smith na Netflix é um tapa na cara

Will Smith é o homem do momento. Na sequência das cenas de lamentável barraco na cerimônia de premiação do 94° Oscar — em que Smith reagiu com, digamos, pouco espírito esportivo à piada infame do comediante Chris Rock sobre a alopecia da mulher, Jada Pinkett-Smith —, o ator recebeu a estatueta de Melhor Ator em reconhecimento a sua performance no drama de família “King Richard: Criando Campeãs”, dirigido por Reinaldo Marcus Green, em que vive o protagonista, Richard Williams, um pai que se desdobra para fazer das filhas, Venus e Serena, meninas negras (e pobres), grandes expoentes do tênis, esporte conhecido pelo elitismo, ou seja, um esporte de brancos endinheirados. O episódio todo tomou proporções completamente inaceitáveis. A história, de tão farsesca, fede a armação. Ao passo que Rock passou não por um bobo da corte, mas um bobo alegre, que se presta a levar uma sonora bofetada em rede internacional em nome de seu ofício — houve patetas comparando-o a Jesus, na medida em que aceita agressões descabidas (mas compreensíveis, exclusivamente no seu caso, nada a ver com o Filho do Homem), e seria um cordeiro de Deus que se imola pelo próximo em nome da liberdade de expressar-se (mas que só oferece a outra face depois de um aumento substancial do cachê) —, Smith, decerto orientado por algum assessor ou por gente da própria Academia, teve de engolir o orgulho viril, recuar do gesto e pedir envergonhadas desculpas ao colega, banhadas, por óbvio, em caudalosas lágrimas (de crocodilo). Fim de caso. Nunca se vai saber com exatidão o que se passou nos bastidores da arenga mais comentada do momento. Todavia, ganhar um Oscar ainda é sinal de prestígio em Hollywood — malgrado no que se refere à excelência artística, festivais a exemplo de Cannes, Veneza e Sundance, nesta ordem, estejam mais de acordo —, como Smith já sabe a essa altura dos acontecimentos. Três anos antes de sua consagração, no dia 27 de março de 2022, o ator também estava na boca do povo, graças à dupla jornada em “Projeto Gemini” (2019). Dupla jornada?

Graças a mais um dos tantos ardis da tecnologia, já empregada com sucesso em “O Irlandês” (2019), de Martin Scorsese, com efeito reverso, foi possível a Smith dar vida aos dois papéis centrais do longa do taiwanês Ang Lee, e o personagem central de “King Richard” ficou a cara do ator de “Feita por Encomenda” (1993), levado à tela por Richard Benjamin, ou seja, ele mesmo, trinta anos atrás. A partir do truque, aprimorado com a colaboração do modelo brasileiro Victor Hugo, um sósia mais novo de Smith, Lee confronta seu protagonista com a versão mais jovem e mais tola de si mesmo num enredo intrincado, em que se misturam um drama de consciência, teorias conspiratórias, organizações criminosas que estendem seus tentáculos para além da vigilância da lei, uma paixão recolhida e a sempiterna vontade do homem de driblar a morte certa.

“Projeto Gemini” tem um caimento até a introdução do conflito principal, que não obstante esteja no título do filme, não desperta maiores suspeitas — ao menos não da forma como Lee, partindo do roteiro de Billy Ray, Darren Lemke e David Benioff, opta por fazer — e outro depois. Henry Brogan, o tipo vivido por Smith, é um atirador de elite formado pelo Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha americana, hoje incorporado pelo órgão de inteligência chefiado por Janet Lassiter, de Linda Emond. A sequência, muito bem filmada, embora meio fantasiosa, dá conta do quão bom é o ex-Marine, que conclui mais uma missão com êxito, apesar de, desta vez, ter sido socorrido pelo acaso mais do que pode admitir alguém na sua profissão. Tomado pela dúvida, e ao mesmo tempo certo de que tem que ser consigo tão assertivo quanto é com os outros, Brogan decide se retirar do serviço e ir desfrutar de um longo período de descanso na Baía de Buttermilk Sound, na Geórgia, sudeste dos Estados Unidos. Lá, conhece Danielle Zakarewski, que substitui o antigo guarda da doca onde mantém seu barquinho. Como já deveria saber (e suspeita), a personagem de Mary Elizabeth Winstead não é quem diz ser, e a partir dessa descoberta, ele tem a certeza de que, mesmo fora do sistema, o sistema não sai dele, como atesta a perseguição do ex-amigo Clay Verris, interpretado por um Clive Owen espantosamente apático. Nesse jogo de gato e rato, com todos os estratégicos lugares-comuns, mas eletrizante, Brogan e Zakarewski deixam a América rumo a Cartagena, na Colômbia, ajudados por Baron, o respiro cômico da história personificado por Benedict Wong. Não adianta: Brogan está condenado a errar pelo mundo até que zere as pendências com o passado, o que de fato ocorre, num happy end piegas e nonsense.

Ang Lee é um diretor talentoso o bastante para que um despautério como este filme faça algum sentido e até tenha graça, o que, mal comparando, nos remete a seu “O Tigre e o Dragão” (2000), que emula um sonho de liberdade de alguém que parece meio perdido, inclusive de si mesmo. Além do aspecto narrativo, “Projeto Gemini” também se assemelha ao longa de 2000, claro, nas inovações tecnológicas de um cineasta que tem se destacado por sempre sacar da cartola uma lebre maior. Para usufruir da mágica, no entanto, é necessário crer.


Filme: Projeto Gemini  
Direção: Ang Lee
Ano: 2019
Gêneros: Ficção científica/Ação
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.