Detesto remakes. Sou um defensor inveterado da ideia de que tudo na vida tem seu tempo próprio para acontecer, e se não acontece, há algum motivo para tanto. Ninguém em sã consciência acredita que um filme, por melhor que seja, repita as mesmas condições em que foi originalmente lançado, ao mesmo tempo em que essas ditas “releituras”, sob pretensos novos pontos de vista, interpretadas por outros diretores, com ajustes necessários, quiçá fundamentais, aqui e ali, alinhavados por roteiristas sagazes, antenados com a época em que vivem, só acabam por dar o testemunho inescapável da preguiça, da falta de assunto, do ramerrão, do oportunismo de certos executivos da indústria do cinema e de muitos realizadores, ávidos por abocanhar o naco de um bolo preparado com ingredientes que não existem mais.
A televisão do Brasil vivencia, a partir de 28 de março de 2022, outro episódio de um campeão de audiência que volta para “assombrar” a concorrência. Será mesmo? Será que uma novela exibida há mais de trinta anos, por emissora que nem existe mais, tem o poder de encantar e mesmo hipnotizar o público passadas três décadas, como fez “Pantanal” na Rede Manchete de Televisão em 1990, numa conjuntura de múltiplas plataformas de transmissão, aplicativos que selecionam as melhores cenas (melhores para quem?), cancelamentos baseados na intolerância do politicamente correto — preparem-se para uma Juma Marruá, a mulher-onça eternizada pelo talento quase naïf de Cristiana Oliveira, que reavalia seus conceitos e se torna vegana; ou casos homossexuais entre os peões da fazenda de José Leôncio, vivido por Cláudio Marzo (1940-2015), ambos na primeira versão —? Eis a desgraça essencial dos remakes: tentar iludir a audiência com a promessa de que é perfeitamente possível voltar ao passado sem nenhum ônus, quando seria muito mais honesto, muito mais digno, perspicaz e saudável partir de um argumento poderoso como o da novela das nove para abordar temas urgentes e legítimos como o da degradação da natureza selvagem; do êxodo rural entre os pantaneiros, que continua a obrigar pais a se separarem de seus filhos, sobretudo nos períodos de estiagem, para prover o sustento do lar; do drama educacional que castiga essas crianças que ficam e têm de se deslocar por quilômetros a pé ou de barco até a escola se não quiserem reproduzir o ciclo de pobreza e abandono que emoldura a vida de seus antepassados. Muito do que se observa numa produção televisiva sobre como é viver no coração do Brasil, ansiando que a esperança brote debaixo do barro do chão ou das águas cada vez mais turvas do Paraguai, se assemelha ao enredo de “Amor, Sublime Amor”.
O musical, com texto de Arthur Laurents (1917-2011), e Leonard Bernstein (1918-1990) e Stephen Sondheim (1930-2021) cuidando das canções, além de Jerome Robbins (1918-1998) como coreografo, levado dos palcos da Broadway em 1957 para as salas de cinema em 1961 por Robert Wise (1914-2005) e Robbins, volta ao cinema, agora pelas mãos de Steven Spielberg, que conhece de cor a fórmula que faz um filme acender. É claro que “Amor, Sublime Amor” ainda tem lá sua graça. Tudo começa bem, para o alto, com a onipresença dos Jets pelas ruas de Nova York, de que se acham os donos. Os arruaceiros, membros da gangue que congrega irlandeses e seus descendentes, deslizam pelo cenário, e o espectador vai junto, como se a vida fosse um número de dança sem hora para findar. São momentos como esse os que suscitam em quem assiste a sensação de que é para isso que musicais são feitos: para lembrar ao homem que, apesar de não ser prudente se abdicar de todo o peso da existência, como recomenda Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), é preciso aceitar que certas quadras da vida só fazem sentido se tomadas com suavidade. Eles são jovens, são fortes, têm pressa de viver, de amar, de sentir que têm a vida toda pela frente, impressão parecida à que também determina os passos dos Sharks, os tubarões porto-riquenhos que invadiram a praia irlandesa. Ao longo da década de 1960, a população hispânico-latina mais que triplicou nos Estados Unidos, Nova York à frente, o que redefiniu muitas coisas no desenho topográfico, antropológico e social da megalópole. Agora, Jets e Sharks disputam cada palmo de chão, liderados respectivamente por Riff e Bernardo, atuações estelares de Mike Faist e David Alvarez. Bernardo, pugilista amador com inclinação para fazer de qualquer esquina um grande ringue, adverte a irmã Maria, de Rachel Zegler, que não se envolva com os gringos. Por óbvio, para que o conflito aconteça e a narrativa deslanche, a personagem de Zegler torna-se alvo do interesse de Tony, um ex-Jet que tenta dar um rumo a sua vida depois de uma temporada no xadrez por tentativa de homicídio. O approach dos dois sucede no baile que reúne toda a vizinhança, irlandeses, porto-riquenhos, italianos e tutti quanti, onde Anita, interpretada por Ariana DeBose — Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel e uma força da natureza —, risca o salão com Bernardo, com quem mantém uma relação meio inconsequente. Temendo, com razão, que a irmã se perca ao se aproximar demais de Tony, que não tem nada a lhe oferecer, vive do que consegue ganhar como funcionário de uma pequena loja e mora no porão do estabelecimento — pajeado por Valentina, personagem especialmente criado para homenagear a lendária Rita Moreno, também oscarizada por sua Anita no filme de 1961 —, Bernardo declara guerra aos irlandeses e, por conseguinte, aos Jets, decisão que acarreta o desfecho trágico que se mantém, com alterações pontuais.
Como dizer que “Amor, Sublime Amor” é Shakespeare em ritmo de salsa é bastante clichê, prefiro me ater aos aspectos técnicos da produção, verdadeiramente faraônicos. Spielberg se cerca de grandes talentos para dotar seu trabalho da inventividade que o consagrou, e para isso se vale do texto de Tony Kushner, autor de um roteiro que preserva características indissociáveis da história, mas que refresca a trama em pontos específicos; da fotografia delicada de Janusz Kaminski, louvável ao contrapor os trechos de música e dança e as reuniões dos bandos de delinquentes nos becos escuros de Upper West Side por meio da forma como colore essas cenas, carregando em tons quentes como o vermelho e o amarelo no primeiro caso, e cobrindo tudo de uma sombra acinzentada no segundo; e, viva!, das coreografias matematicamente estudadas de Justin Peck, cujos movimentos, sempre vigorosos, são também (e principalmente) fluidos, orgânicos. É como se se tratasse mesmo de um universo paralelo, em que os personagens, embora guerreiem entre si, vivam sob outro ritmo, regidos por uma entidade que os faz compreender a vida como um sonho — ainda que malfadado.
Gostei da recriação de Steven Spielberg não por ser Spielberg, mas por ser capaz de dizer tudo o que o filme de Wise disse com suas próprias palavras, mantendo o espírito que lhe deu origem. Uma das produções mais esteticamente refinadas do cinema contemporâneo, o “Amor, Sublime Amor” de 2021 consegue ainda deixar lições aos sabidos que pensam que ter gênio é queimar as pontes que ligam o passado ao presente e desembocam nas trilhas pantanosas do futuro. Isso é só pirraça.
Filme: Amor, Sublime Amor
Direção: Steven Spielberg
Ano: 2021
Gênero: Musical/Drama/Romance
Nota: 9/10