Uma das ficções científicas mais bem elaboradas da história do cinema está na Netflix

Uma das ficções científicas mais bem elaboradas da história do cinema está na Netflix

Decerto um dos filmes mais impressionistas do cinema, “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” balançou com força a pasmaceira do cinema de ação em 2017, mesmo usando os argumentos de sempre, useiros e vezeiros em todas as outras produções do gênero. Se há algum segredo no trabalho de Rupert Sanders, é justamente o apuro estético, quiçá a maior qualidade da releitura fílmica do quadrinho japonês, tornado animação em 1995. Aliás, esse parece ser o protocolo: um mangá de público massivo vira anime, que por seu turno, acaba se transformando em longa-metragem, como se o sucesso da narrativa num formato muito determinado fosse garantia de ampla aceitação em mídias diversas. Casualmente, se deu esse milagre com “Ghost in the Shell”. Valendo-se do texto de Masamune Shirow como uma espécie de esqueleto, Sanders constrói sua própria visão do enredo, dando carta branca a Jess Hall para empenhar o maior número de fichas na computação gráfica, o ponto forte da história, sem dúvida. Então, aparecem os problemas.

A história toma corpo num futuro que está mais para presente, 2029, momento em que não existe mais nenhuma esfera da vida humana que já não tenha sido tomada por melhorias cibernéticas de alto nível. Essa superioridade do homem do futuro julga intolerável, por exemplo, que seres humanos morram por causa de doenças e eventos para os quais a tecnologia acena com uma solução. É o que acontece com a major Mira, cuja identidade permanece em suspenso depois do ataque a uma embarcação que levava refugiados de guerra, do qual escapa com ferimentos graves. Mira, vivida por Scarlett Johansson, só volta à vida graças à intervenção de um grande conglomerado de empresas, as Indústrias Hanka, com forte participação estatal, que patrocinam um experimento capaz de enxertar seu cérebro num corpo fabricado artificialmente. Tal experimento nunca fora feito antes, e Mira é o primeiro espécime dessa nova forma de vida, um híbrido entre o homo sapiens e um autômato tecnologicamente superior. A direção de Sanders dá a Johansson elementos para que a atriz desenvolva a personalidade um tanto imprevisível dessa criatura, perfeitamente amalgamada entre homem e máquina, natureza e ciência. Por dentro da cabeça da Major, como é chamada, a mente e o espírito dessa mulher que ela não conhece e ignorada por todos. Major Mira é um fantasma na concha.

Lotada na Seção 9, divisão responsável por ações de antiterrorismo comandada por Daisuke Aramaki, de Takeshi Kitano, a Major não consegue desempenhar suas funções a contento, tão assombrada se encontra por visões que remetem-na a seu tempo de pureza, quando era apenas mulher, imprevisto que a doutora Ouelet — um bom desempenho de Juliette Binoche, bissexta no cinema recente — atribui a uma falha cognitiva, não a algum fato inerente a sua realidade passada. Além de não entender como funciona seu próprio novo organismo, a protagonista se reveste da certeza de que Aramaki e os outros líderes lhe escondem alguma coisa. Kuze, o terrorista caçado pela Seção 9, alerta a heroína do risco de se confiar nas Indústrias Hanka, e, embora breve, a participação de Michael Pitt se presta ao papel de super ego da protagonista, refreando-lhe os impulsos e fazendo com que modere seu entusiasmo quanto às pesquisas que lhe deram origem.

“Ghost in the Shell” não se atém às idiossincrasias do trabalho de Shirow e centra força no caráter puramente heroico, tão caro ao povo americano. O herói é, por excelência, um mártir, alguém que abdica de sua individualidade a fim de salvar a humanidade, como um todo ou aquela ao seu redor. Essa cosmovisão se faz presente, grosso modo, na decisão de escalar Johansson para o papel principal. Conforme se assiste perto do encerramento, quando Mira tem certeza sobre quem é, e mais importante, que teve uma história, que continua a tê-la. Heróis também precisam de colo.

Fonte de debates algo despropositados, se a pseudoquestão racial de Scarlett Johansson como uma heroína nipônica em “Ghost in the Shell” já não passava de mero casuísmo, toda essa argumentação perde o resto da força que poderia ter frente ao trabalho de composição da atriz, que mesmo não sendo, por óbvio, japonesa — nem nipo-americana —, que usa a seu favor seu generoso arcabouço físico, uma sua marca registrada, e confere a alguns de  seus personagens uma profundidade que, honestamente, nem sempre se espera. Quanto a esse segundo filme de Rupert Sanders, britânico que ambienta a história de um quadrinista japonês na Nova Zelândia, o mínimo que se pode dizer é que a originalidade tem um preço. Mormente quando nasce do trabalho alheio.


Filme: Ghost in the Shell
Direção: Rupert Sanders
Ano: 2017
Gênero: Ficção científica/Drama/Ação
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.