A pior forma de amar é sentir saudade

A pior forma de amar é sentir saudade

Ninguém é perfeito: adoro treta e churrasco. Quando voltava do banheiro, um cara tocou-me no ombro. Que ousadia. À primeira vista, pareceu-me um total desconhecido. Seria a porcaria de mais um lapso de memória a me trair? Não. Nunca o tinha visto mais gordo. Era um cinquentão macilento, calvo, com um bigode cafona. Quem ainda nesse mundo usa bigodes, Senhor?  

Chorava, compulsivamente, como uma criança. Achei o comportamento um tanto patético, mas, mesmo assim, dei-lhe ouvidos. Conseguiu se recompor minimamente para se apresentar. Realmente, um estranho. Pediu-me desculpas por estorvar o almoço e quis saber se aquele senhorzinho sentado à minha mesa era um parente, quem sabe, o meu genitor. Respondi-lhe que sim, que ele era o meu velho. Chorando mais do que noiva em noite de núpcias, explicou-me que papai se parecia demais, fisicamente, com o pai dele, que tinha esticado as canelas fazia um ano.

Teve altivez suficiente para confidenciar que andava muito afetado por sentimentalismos e que ainda não tinha se acostumado com a falta que o pai lhe fazia. “Ando tão à flor da pele…”, ele disse, pinçando a frase de uma velha canção do Zeca Baleiro. O plágio me deixou cabreiro, de orelha em pé. Tenho essa coisa de me comportar como um atoleimado. “A pior forma de amar é sentir saudade, amigo. Sofrer de ausências não tem prazo de vencimento. Dizem que a coisa só piora com o tempo…”, ele decretou, trágico, a enxugar os olhos nas mangas da camiseta. Pela estampa com a famosa língua do Mick Jagger, via-se logo que se tratava de mais um fã dos Stones.

Sensível como um maçarico, eu disse que realmente lamentava muito pela morte de seu pai. Ele contou que o velhote fora acometido por um nó nas tripas, pegando a todos da família de surpresa. “Foi pá-pum”, resumiu, onomatopeico. Esperavam que o senhorzinho batesse as botas em doses homeopáticas, sem pressa de morrer, por conta de um conhecido câncer de próstata que se já arrastava por mais de duas décadas. “Acho que papai desencarnou antes da hora…”, ele diagnosticou, fazendo-me lembrar que era domingo, que estávamos dentro de uma churrascaria e que eu amava carnes.  

Como não podia fatiar o sujeito, cortei logo a conversa. O desconhecido cujo nome miseravelmente não me recordo perguntou se seria muito intrusivo e inconveniente se ele se aproximasse para trocar algumas palavras com papai. Eu disse vá em frente, meu chapa. Eu já tinha vertido pelo menos três caipirinhas, então, estava mais sensível do que a média dos últimos cinquenta e seis anos. Sentia fome. Sentia compaixão por aquele parceiro de rock and roll que não parecia tão duro e tão forte quanto uma pedra.

Rolamos até a mesa. Tocava um maldito Ray Conniff. Coisas de churrascaria. Cutuquei o meu velho que cochilava em meio à algazarra de vozes e ao tilintar dos talheres. Ele abriu os olhos, esticou o pescoço, esforçando-se para escutar o que eu dizia. Era um homem teimoso que resistia em usar aparelhos auditivos, ficando, portanto, na maioria das vezes, fora de sintonia, calado, durante as conversas e as comemorações em família. A surdez, quem sabe, garantisse a ele sossego e paz de espírito. Tinha gente que era insuportável de se ouvir. Eu, por exemplo. Toda família tem um carma. Eu tinha carne entre os dentes.

Expliquei para o papai que alguém queria muito lhe falar e fui me sentar, cambaleante, semiembriagado, na outra extremidade da mesa. Beberiquei. Beijei a minha gata. Apaixonei-me por uma garçonete sem máscara, sósia da Gal Gadot — seria efeito do álcool? — com borrachinhas lilases no aparelho ortodôntico, que servia um delicioso arroz piamontese. Pernicioso, fiquei de olho naqueles dois perdidos. O mundo andava cheio de fanáticos, de maníacos. Requisitei ao metre que alguém passasse logo com o famoso espeto de picanha, o mais esperado de todos. Sentindo os olhos confusos entre chorar e não chorar, vi quando o meu velho aprumou o corpo esquelético, encontrou o ponto de equilíbrio, arrastou a cadeira na velocidade e na dificuldade inerentes aos homens senis combalidos pelas moendas do tempo, para ser cuidadosa e calorosamente abraçado por um homem desconhecido que fora arrebatado pela saudade rascante do pai morto durante um despretensioso almoço em família.

A churrascaria estava cheia e o meu coração já não parecia tão vazio, tão escuro e tão infrutífero quanto na maior parte do tempo. Àquela altura da vida, ainda não tinha aprendido a lidar com os próprios sentimentos. Molhei a palavra, de novo, para disfarçar a emoção. Detestava comover-me, mas, já não me sentia um filho tão racional e tão insensível quanto se dizia. A fama de iceberg-sobre-pernas derretia. O Titanic estava naufragando fazia tempo. A morte beijaria o velho. E a saudade chegaria, sorrateira como uma serpente, e cresceria, pungente como um tumor, com toda certeza, like a rolling stone.

(Para meu pai).

Eberth Vêncio

É escritor e médico.