Tive a nítida e definitiva sensação de que mudamos de estação (frequência, paradigma, corte epistemológico, entendam como quiserem) quando dei a segunda mordida no sanduíche de pernil lá no Estadão. Pois bem, depois te ter driblado alguns cadáveres na Major Quedinho, cheguei no bar; encontrava-me encostado no balcão relativamente pacificado a respirar os vapores pútridos da cidade, eu & meu sanduíche de pernil, quando ouvi guinchos e ruídos ameaçadores no local. Algo parecido com dois adolescentes, bastante beligerantes e confusos. A atmosfera pesou. Conjecturei que a dupla encontrava-se na iminência de assaltar o bar. Qual minha surpresa ao olhar para trás e verificar — pasmem — que vestiam o uniforme do colégio Dante Alighieri. As aulas e a vida presencial voltaram pra valer!
Eram só dois garotos lourinhos, de 15 ou 16 anos, provavelmente se aventurando no Centrão proibido pelos pais e/ou responsáveis. Pelo que entendi, emulavam o stile vida loka dos filhos da copeira deles, e, claro, matavam aula.
Quer dizer que se fossem os filhos da copeira iam te assaltar? Parêntese antes do linchamento: estamos falando da reação imediata a uma situação ameaçadora, ou seja, reflexo condicionado é uma coisa, discriminação social e juízo de valor são outras que, com certeza, devem estar provocando comichões em meia dúzia de torquemadinhas sem glúten que me leem neste instante. Sem glúten e sem talento, diga-se de passagem.
Bem, de um jeito ou de outro me senti subtraído, primeiro porque tive de fazer esse parêntese e, depois, porque é disso, de subtração, desajustamento, imobilidade e estupefação que trata essa crônica. Dispenso os linchadores, eu mesmo faço o serviço.
Duas coisas: 1 — R$ 4.850,00 (quatro mil oitocentos e cinquenta reais) é o valor da mensalidade no colégio Dante Alighieri. Penso comigo mesmo: não seria uma quantia muito alta para se investir num aprendiz de nóia? O que, afinal, justificaria tamanho investimento? A tabela periódica? A fórmula da Bháskara? Acho que não. Talvez a vaidade de parar a BMW em fila dupla pudesse explicar o custo/benefício da empreitada. E, neste caso, até que não é muito dinheiro se avaliarmos a possibilidade de que o pai/e ou responsável teria chance de trocar figurinhas, fazer amizades e influenciar os passageiro$ das Mercedes Benz e dos Audis estacionados em fila tripla. Numa dessas, quem sabe, conseguiria arrumar uma credencial para o clube de tiro ou um casamento para o(a) herdeiro(a) aprendiz de nóia; pensando bem, a mensalidade no Dante é uma mixaria.
2 — Ademais, no século 20, os humoristas chamariam minha reação, a supracitada, de “instinto de sobrevivência”. Era uma época em que as pessoas acreditavam (ou fingiam acreditar em Darwin). Não sei se, hoje, esse argumento é válido.
Fechado o parêntese, vamos em frente. Intrigante como não só as gírias, mas sobretudo a maneira de agir e reagir diante da realidade contaminou a sinopse do paulistano a ponto de modificar até o próprio sotaque. Tá difícil viver no século 21. É curioso como o “erre de ponta de língua” — típico Rádio Nacional macarrônico dos anos 50 — foi riscado do mapa.
Nota: aquele “erre radiofônico estalado na ponta da língua” era patético, constrangedor, bolorento, caricatural; ótimo que tenha sido riscado do mapa. Ainda assim, não consigo assimilar a novilíngua dantesca (dos meninos do Dante) e, muito menos, os paradoxos que ela traz consigo: como se os guinchos e as rimas que não fazem questão de esconder o abismo de classes e as diferenças abissais que existem entre a vida mansa que levam os garotos do Dante versus a vida de privações que vivem os garotos da Vila Mascote, os unisse em algum lugar inimaginável do Youtube/Tik Tok (de onde provavelmente emergiram) e, ao mesmo tempo, subtraísse o pouco da identidade, digamos imaterial, que eu ainda poderia ter com a cidade.
Apesar de tudo, o sanduíche de pernil do Estadão continua lindo. Eu recomendo desde que o extraterrestre/tiozão desavisado como eu — que caiu de paraquedas no século 21 — carregue na pimenta-pesadelo e não se esqueça de que ele, tiozão, é mais um defunto-indigente inserido a contragosto dentro de uma simulação mequetrefe do tempo-espaço. Não falamos mais de um lugar, um sanduíche de pernil, um bar, uma cidade, um país. Mas de algo parecido com uma jaula ancorada no espaço: vivemos presos numa tese ou num experimento ocupado por mortos-vivos que curtem a fraude e o engano e se alimentam das próprias fezes; by the way, Mark Zuckerberg — consorciado com o capeta — foi quem ajambrou esta senzala-zumbilândia onde nos encontramos todos encalacrados, mesmo estando fora dela. A próxima etapa chama-se metaverso: — E aí, tio, paga um lanche?
Os traficantes da cracolândia vendem pedras a dez reais, que também são conhecidas como “lanches”. Ameacei dar dez reais para o loirinho de cabelo encaracolado — lindo, parecia um querubim — mas sob uma condição: — Só se você me disser o que é inércia.
O anjinho respondeu na hora: — É a propriedade segundo a qual um corpo ou um objeto não pode modificar seu estado de movimento ou repouso a menos que sobre ele passe a atuar algo ou alguma força. Newton, tá ligado, tio?
Nada como a educação de um dos colégios mais tradicionais da cidade — não é o mais caro — formando empreendedores, líderes e cidadãos pró-ativos desde 1911. Só não sei se é Newton, mas vá lá: — Opa, tô ligadíssimo, querubim. Daqui, você vai seguir pela São Luís até a Praça da República, aí desce a rua Aurora, tá ligado?
— É nóis, tio.
— Depois rua Guaianazes e logo vocês vão chegar na avenida Rio Branco, quase Estação da Luz. Depois é só seguir o fluxo até a Disney. Não vai dar nem quinze minutos a pé. O Haití é aqui e a cracolândia é logo ali. Tá aqui, vintão. Dez pra cada um. Agora tchau, desocupem a fila dupla, desinfetem.
O sanduíche de pernil do Estadão continua imbatível, o melhor da cidade.
PS. Este texto foi escrito uma semana antes de os traficantes da cracolândia resolverem dispersar os nóias do local. Aquilo que o poder público tentou fazer nos últimos trinta anos, o crime organizado fez em uma semana. Consta que a nova Disney foi transferida para a praça Princesa Isabel. Espero q os garotos tenham chegado à tempo de curtir a zumbilândia, e quero que o Estado refém do crime organizado, os filhinhos de papai, os viciados e os traficantes, queria que todos eles sumissem do mapa ou se transferissem para o famoso vão do Masp. Ou quiçá para dentro do Masp, numa espécie de exposição-zumbi permanente sobre o fracasso da passagem do ser humano “maldita é a terra por tua causa (Gênesis 3:17-19)” pela face da mesma.