O filme imprevisível e cínico da Netflix que vai invadir cada milímetro de seu cérebro

O filme imprevisível e cínico da Netflix que vai invadir cada milímetro de seu cérebro

Por que vigaristas são tão charmosos? Essa é a primeira pergunta que “Eu Me Importo” parece lançar ao rosto do espectador que, entre constrangido e algo inspirado, terá de concordar com a premissa básica do filme de J Blakeson. Inspirados?! Isso mesmo, exatamente. Além da pergunta sobre o provado encanto que trambiqueiros de toda natureza exercem em cidadãos de bem, sequer capazes de processar a ideia de erigir uma fortuna milionária às custas do prejuízo de quem quer que seja, essa história, como tantas outras desse jaez, suscita muitas mais. Volto a elas em breve.

Blakeson tem sido particularmente feliz ao retratar as angústias, ardis e, principalmente, o caráter enigmático de personagens femininas, sucesso que compartilha com sua protagonista. Em “O Desaparecimento de Alice Creed” (2009), o diretor já havia dado uma boa noção do que poderia fazer com um bom argumento, elenco afiado e um caixa que, por incrível que pareça, terminou no vermelho. Bilheteria não é exatamente o melhor critério para se determinar a qualidade de um filme e Blakeson, que decerto o sabe, não se deu por vencido e deu a volta por cima. Onze anos depois, escaldado e com outros bons trabalhos no porta-fólio, o cineasta escolhe levar à tela um enredo verossímil, mas que sem dúvida melindraria muita gente. Daria certo? Ninguém melhor que Rosamund Pike para ajudá-lo.

Pike é outra afeita a ferir suscetibilidades. Em “Garota Exemplar” (2014), que também alude a um sequestro, a atriz já se saíra muito bem como a esposa neurótica de Ben Affleck, e no filme de 2020, Pike, vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz pelo papel, bota as garras bem manicuradas de fora para defender Marla Grayson — uma mistura de Mildred Ratched, a enfermeira diabólica de “Um Estranho no Ninho” (1975), dirigido por Milos Forman, rediviva na série protagonizada por Sarah Paulson 45 anos depois, em 2020, e Lara Croft, a heroína da franquia “Tomb Raider”, que saiu dos videogames do final dos anos 1990 para as salas de cinema disposta a não deixar pedra sobre pedra —, que descobriu um filão bastante inovador no ramo da curatela profissional de idosos e pessoas com necessidades especiais. Valendo-se de uma ampla rede de médicos, cuidadores e advogados que deixam a ética de lado à medida que os zeros à direita se multiplicam na conta bancária, a personagem de Pike é uma das perversões do American way of life, tão odiado quanto alvo de inveja.

O que você quer ser: ovelha ou leão? Quem dá as cartas no jogo ou um marginal? Essas são as outras indagações que “Eu Me Importo” levanta, com a força do cinismo de Marla Grayson. Sempre pronta para uma próxima rodada, e o baixo cacife nunca é problema, Grayson parte para o tudo ou nada, mas erra na aposta. A paciente selecionada pela geriatra Karen Amos, vivida por Alicia Witt, que parecia a presa ideal — rica, não muito velha, com sinais de uma possível deterioração mnemônica, facilmente conversível para Alzheimer ou esclerose múltipla mediante um laudo enganoso e, o principal, sozinha no mundo —, acaba sendo um empecilho ao incessante plano de enriquecimento da cuidadora. A entrada em cena de Dianne Wiest como Jennifer Peterson, a pedra no sapato de Marla Grayson, que só com a ajuda da assistente Fran, de Eiza González, sua parceira nos negócios, no crime e na vida, consegue fazer de Peterson um sonho menos distante. Mas apesar de não ter parentes, a personagem de Wiest, que vira a chave para um segundo ato da trama como um thriller de ação, conta com algo muito melhor: o afeto e o reconhecimento de alguém que não se esqueceu dela. O mafioso russo Roman Lunyov, interpretado por Peter Dinklage, destaca um batalhão de capangas para libertar a mulher que tem como uma mãe do jugo da loba loira, mas no desfecho, depois de tentarem se aniquilar mutuamente, uma reviravolta deixa claro que o poder do dinheiro anula (ou ao menos mitiga) qualquer ressentimento. Marla Grayson só é arrancada do trono por Feldstrom, de Macon Blair, o filho de uma paciente negligenciada e espoliada pela agora multimilionária dona de uma holding de asilos e casas de assistência médica para idosos, que vai ter de gozar seu suado patrimônio numa próxima oportunidade.

J Blakeson parte de um recorte geral para uma análise específica e chega a algumas conclusões. A que mais salta aos olhos é que cada personagem do filme tem sua parcela sombria, em maior ou menor proporção — e, por óbvio, a líder da quadrilha é mesmo a Marla Grayson de Rosemund Pike. Poder-se-ia dizer que o talento da atriz é colocado à prova aqui, mas Pike é talentosa, experiente e astuta demais para que se queira determinar onde teria ou não sucesso garantido. Preguiçosamente vendido como uma comédia, não é possível conceber o longa destituindo-o da grande farsa que o acompanha desde as cenas iniciais, reforçadas justo pelas de encerramento, momento em que uma solução fácil demais dá termo do conflito, precisamente quando o carisma magnético da personagem central, qualidade bastante comum em vilões, já nos havia capturado e, não sejamos hipócritas, torcíamos por ela. Uma vez que não há mocinhos ou heróis nessa história, por que só Marla Grayson saiu por baixo? Eis outra das questões que emergem de “Eu Me Importo”, mas essa não precisa de resposta.


Filme: Eu Me Importo
Direção: J Blakeson
Ano: 2020
Gênero: Comédia/Drama/Thriller
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.