Nos enganamos dia após dia, até que nos perdemos de nós mesmos

Nos enganamos dia após dia, até que nos perdemos de nós mesmos

Prestamos atenção em tudo. No jeito de falar, no tom da voz, na ênfase das palavras, no olhar que pousa sem pressa. Cada detalhe é perceptível quando alguém acaba de entrar pela porta do nosso coração. Enquanto isso, nós nos mostramos exatamente como queremos. À primeira vista somos todos tão encantadores e fascinantes.

O amor é rápido, ele entra e vai logo se acomodando. Num piscar de olhos nos deixamos levar pelo bom humor típico de quem ainda não se revelou por completo, e pela expectativa de um futuro excitante conduzido à dois. A impressão é que vemos sem realmente enxergar. Embarcamos sem prestar muita atenção aonde estamos pisando, confiantes de que, ao menos, sabemos exatamente quem somos. Sabemos mesmo?

Conhecemos as nossas virtudes e temos certeza das nossas fraquezas, ainda que não as admitimos em voz alta. A gente mascara, deixa ali num canto, debaixo do tapete, e finge, simplesmente, que elas não existem. Nos enganamos sem o menor constrangimento. Até que um dia, depois de tanto esconder debilidades, nos perdemos de nós mesmos. E aí vem a parte complicada.

É impossível passar por cima da nossa essência, atropelar o nosso eu sem olhar para trás, seguir viagem sem carregar nenhuma bagagem. Somos um apanhado de coisas boas e outras nem tão boas assim. E não adianta fugir. Mas dia, menos dia, nos alcançamos e batemos à porta indignados com a separação entre quem somos e quem nos tornamos.

Fingimos esquecer das nossas raízes e nos moldamos aos galhos dos outros. Fingimos acreditar no discurso genérico bem ensaiado dito aos quatro ventos. Fingimos uma importância que o outro não tem, enquanto dissimulam uma prioridade que também não possuímos. A gente finge o tempo todo, na cara dura, porque buscamos desesperadamente por uma completude que venha de fora. Fingimos por carência e porque temos a esperança tola de encontrar a metade que nos falta em qualquer pessoa pela metade. Então, toda nova companhia é uma possibilidade para ser feliz, mais que isso, de mostrar-se feliz.

Por isso apostamos todas as fichas e queremos fazer valer a pena, mesmo com a percepção de que aquele lá não é merecedor da nossa entrega. Mas a gente finge que acredita, e fingimos, também, que estamos errados em nossos pensamentos.

Olhamos de fora para dentro. Porque é mais fácil. Olhar de dentro para fora exige muito trabalho, requer atenção, um tempo de análise — tempo esse que ninguém quer perder. Temos pressa de viver, de experimentar, de arriscar. Queremos mais é ser feliz a qualquer custo, ainda que a felicidade seja momentânea.

Buscamos no exterior uma satisfação instantânea e uma leveza que acabam, justamente, porque são rasas. A verdade é que estamos percorrendo o caminho inverso e temos a consciência absoluta disso. Continuamos batendo a cabeça na parede e partindo o coração com quem não vale os nossos ânimos. E isso é o pior. Errar, reconhecer o erro e permanecer errando. Por preguiça, por cansaço, por desilusão.

Afinal, quem são essas pessoas que insistimos fazer valer a pena? Se nós mesmos não nos enxergamos e muitas vezes não nos respeitamos, como podemos nos aprofundar nos outros?

A pressa é inimiga da perfeição. Não que existam relacionamentos perfeitos, mas para que dê certo, talvez devamos nos reconhecer primeiro. Só a sabedoria do auto conhecimento nos fará perceber a vez de recuar e o momento de avançar. Quanto mais nos entendemos, menores são as chances de ferir o nosso coração.

Karen Curi

é jornalista.