A vida é um prolongamento das trevas silenciosas do útero materno, em maior ou menor grau. Ao ver a luz do mundo, somos lançados num precipício tão mais fundo, sombrio, lodoso, em que nada é mais como nos adaptamos a reconhecer como lar, a redoma de segurança, confortável, revigorante, pedaço de eternidade que alguns julgam a grande maravilha do existir e que, imaginamos, será nosso abrigo até o fim. Uma vez fora desse recanto mágico, de um momento para o outro, somos obrigados a lutar por algo que supúnhamos ser nosso por direito e para sempre. Aprendemos que vamos ter de lidar com situações extremas, cuja mera insinuação sequer nos passara pela cabeça um dia, e palavras como “guerra” e “pandemia” se apoderam do nosso cotidiano. Estávamos miseravelmente confinados, e assim permanecemos por quase dois anos, apenas saindo para cair direto na boca do lobo, acossados por tiranos que desdenham da própria vida, da dignidade de seu povo, da soberania de nações adjacentes, do gênero humano ele mesmo. Viver é um exercício incessante de superação, cujo caráter de sacrifício nem todos estão preparados ou dispostos a encarar, muito menos vencer.
“Como Pétalas que Caem” (2022) pode ser tomado como romance cuja abordagem açucarada sobre a aventura de viver, seus desafios fundamentais e as questões para as quais não há solução possível no horizonte talvez soe até leviana, mas é por meio dessa visão assumidamente cor-de-rosa que o diretor Yoshihiro Fukagawa, a partir do roteiro de Tomoko Yoshida, consegue se aprofundar sobre assuntos desde sempre urgentes ao homem. A heroína, nascida primeiro no romance homônimo de Keisuke Uyama, atende pelo nome de Misaki Ariake, cabeleireira no subúrbio de Tóquio, moradora de Kamata, um bairro ainda mais afastado das grandes badalações, mas que não deixa de reservar, malgrado para si mesma, suas aspirações. Numa tarde de primavera, aparece no Penny Lane, o salão em que trabalha, um sujeito estranho, cabelos desgrenhados clamando por um corte. Dá-se um diálogo breve entre os dois e ela logo fica sabendo que o rapaz chama-se Haruto Asakura e é fotógrafo. Os personagens de Kento Nakajima e Honoka Matsumoto ressaltam, cada qual num diapasão diferente, a seu modo e obedecendo a uma frequência própria, a inocência da floração da árvore da vida, que começa a verdejar, floresce em seguida e, todos sabemos, fenece cedo ou tarde.
Tudo entre Ariake e Asakura acontece muito devagar — devagar até demais, diríamos muitos ocidentais, incapazes que somos compreender a grande sabedoria do usufruto da vida em todas as suas esferas. Até para trocarem telefone passa-se um tempo fabuloso e quando afinal o fazem e começam a sair, quase um ano depois que se conheceram, e de uma pequena reviravolta que define os rumos e o desejo reprimido da protagonista, os mocinhos de “Como Pétalas que Caem” assumem a postura de um casal como deve ser. Mais uma guinada aparentemente sem maiores consequências no enredo e o relacionamento esfria, mas os dois voltam às boas, convictos de que o que sentem um pelo outro e capaz de fazê-los passar por cima de inseguranças tolas e os desentendimentos que elas geram. Só para que, uma vez mais, interponha-se entre os dois um capricho do destino, que ameaça separá-los para sempre, sem chance de retorno. Esse episódio desditoso afeta a cabeleireira diretamente, abreviando-lhe a saúde, a beleza e o viço de seus verdes anos de um só golpe, mas Asakura, se for mesmo tão apaixonado por ela quanto diz, é que será o maior prejudicado em ter de se conformar com uma vida pela metade.
Japonês, Fukagawa reproduz sem nenhum pejo estereótipos acerca da cultura oriental, como o namoro excessivamente casto, mesmo depois de algum tempo — mas que pega fogo uma vez que o casal se descobre e se percebe unido muito mais que apenas pela atração física —, o respeito, e até a reverência às tradições, o entendimento da morte como tentativa de redenção e promessa última de felicidade eterna. Nenhum dos dois personagens centrais é propriamente alguém cuja trajetória tem o poder de convencer quem quer que seja de que nascer num país rico seja garantia de que o sucesso floresça como as cerejeiras, farto e sem esforço, mas a beleza de ser um indivíduo dotado não somente de razão é que confere sentido à vida, cadência de desventuras amenizadas quando descobrimos alguém disposto a seguir conosco. Malgrado por um trecho breve da estrada.
Filme: Como Pétalas que Caem
Direção: Yoshihiro Fukagawa
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10