Carregado de raiva e tensão sexual, filme da Netflix vai abrir um barril de pólvora na sua cabeça

Carregado de raiva e tensão sexual, filme da Netflix vai abrir um barril de pólvora na sua cabeça

Com a escalada do fascismo e mesmo do neonazismo em muitos países ao redor do mundo, há quem se agrupe e, na esperança de vencer novas configurações de um velho mal, combata o inimigo com as mesmas armas. Talvez resolva, mas também pode ser que, renunciando a grandes legados da civilização, como a diplomacia e a capacidade de negociar em cenários extremos e alcançar resultados menos negativos, e adotando ao arcaico Código de Hamurábi (1810 a.C.-1750 a.C.), fundador da dinastia babilônica na Antiguidade, e sua sanguinária lei de talião, terminemos todos cegos, banguelas e mortos. Na Alemanha de nossos dias, contudo, parece que a filosofia de Hamurábi é uma hipótese quanto a livrar a humanidade dos novos candidatos a tiranos que despontam dia sim, dia não. Em “E Amanhã… O Mundo Todo” (2020), a diretora germânica Julia von Heinz dá espaço a essa parcela radical da juventude alemã, ainda bastante perdida — mesmo que eles nunca o admitam — num mundo que não para de mudar e evolui tão pouco.

Mannheim, cidade de médio porte no sudoeste da Alemanha, participa meio a reboque desse capítulo da história contemporânea. Seus 310 mil habitantes assistem ressabiados ao alvoroço dos estudantes universitários que instituíram e dirigem uma comunidade do movimento Antifa, que tem ganhado notoriedade por propagar a luta contra ideologias totalitárias por qualquer meio — inclusive com o uso da força bruta. Von Heinz pensou em ambientar seu filme nos anos 1930, quando, como uma resposta à ascensão de Adolf Hitler (1889-1945), o Antifa foi criado, mas discussões urgentes típicas do século 21, a exemplo do enfrentamento do racismo pelo igualmente belicoso Black Lives Matter fizeram-na mudar de ideia. Não obstante, a maneira como escolhe conduzir a narrativa, com espaço tanto para os ativistas nervosinhos da Geração Z, que não hesitariam em botar abaixo o mundo sem que tivessem alguma outra para botar no lugar, como para os idosos millennials, os pré-históricos remanescentes da Geração X ou mesmo os jurássicos baby boomers, todos já cansados de guerra, mas entusiastas das batalhas alheias, que sempre podem dar em muita coisa, inclusive em nada. Como escreveu Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) em seu Bildungsroman fundamental “O Leopardo”, publicado postumamente em 1958, há coisas que mudam a fim de que tudo reste igual. Assim mesmo, sempre há que se repisar certos assuntos de quando em quando.

A despeito da qualidade técnica, com a fotografia muito bem elaboradas de Daniela Knapp, que absorve o espectador para a cena, ao passo que a trilha sonora de Matthias Petsche e o design de som de Bettina Bertok sugerem momentos de lucidez e desnorteio da protagonista, a atualidade de “E Amanhã… O Mundo Todo” garantiu à diretora e seu trabalho ingresso no Festival de Veneza de 2021, onde Von Heinz abiscoitou seu merecido Leão de Ouro. A personagem central, Luisa, de Mala Emde, é uma estudante de direito que decide que hora de cuidar da própria vida sem a interferência dos pais e seu amor meio opressivo. De família rica e conservadora, Luisa se depara de imediato com as dificuldades de viver segundo suas convicções, mas é acolhida por Batte, sua amiga desde o ensino médio. Interpretada por Luisa-Céline Gaffron, Batte mora na tal comunidade Antifa enquanto não se forma na universidade. Cada vez mais confusa, a personagem de Emde fica também escandalizada com o modus operandi do Antifa, que cancela sem cerimônia qualquer tentativa de debate com interlocutores que não comunguem de tudo quanto defendem atirando tortas de creme no rosto de quem toma a palavra.

Ainda sentindo a temperatura do caldeirão sociocultural em que o mundo do século 21 ferve — e a Alemanha nesse particular em especial —, com manifestantes francamente mais propensos ao confronto físico, caso de Alfa, destaque de Noah Saavedra, Luisa se encontra cindida entre essas duas cosmovisões, a sua e a de Alfa, por quem fica romanticamente balançada. Mas só no começo: sem saber se por influência do tipo vivido por Saavedra ou por conseguir dar a seu próprio destino o verniz ideológico (e violento) que sempre estivera consigo, latente, a anti-heroína embarca de corpo e alma — nessa ordem — na aventura de viver o sonho distante de uma utopia, e, portanto impossível, do mundo ideal. Ela já tem idade para saber onde deram delírios semelhantes, tanto mais em sendo alemã. Luisa, Alfa e Batte são detidos em alguma proporção pelo sangue frio de Lenor, de um Tonio Schneider irretocável, que se esmera não em erradicar o ódio dos corações e mentes dos colegas, mas em aliá-los a uma dose generosa de pragmatismo político, e Dietmar, papel de Andreas Lust, um ex-militante de meia-idade dado a, digamos, excessos na juventude, práticas de que ainda se sente saudoso, mas ou por estar já alquebrado pelo tempo ou por algum laivo de sensatez tardia, relegou definitivamente ao passado. 

O expediente de que Von Heinz e seu corroteirista e marido John Quester se valem quanto a polvilhar “E Amanhã… O Mundo Todo” dos princípios antifascistas, perfeitos na essência, abomináveis na execução, oscila do dogmático para o panfletário, e daí para o antitético, sem que se tenha suficientemente claro o que querem defender. À vontade ou não, familiarizado o bastante ou de todo alheio em relação ao tema, o espectador é forçado a se decidir entre o tratamento hagiográfico dispensado ao truculento Antifa ou uma abordagem muito mais suave da questão, que pode levar séculos para surtir efeito. Uma ou outra, porque irremediavelmente contaminadas por um maniqueísmo pueril, fenecem como os cravos brancos depositados à sepultura da irmã mais moça, abatida pelo maior mal a habitar a alma humana desde sempre.

Por mais superficiais que sejam, filmes como este sempre trazem lições. Julia von Heinz se perde em meio a diatribes artificialmente fervorosas sobre liberdade, democracia, Estado de direito, respeito à individualidade, mas acerta ao insinuar, atabalhoadamente, que sem eles a humanidade seguiria dando uma no cravo, outra na ferradura. O pior de tudo é constatar que líderes com essa postura diante da comunidade internacional vão longe, apoiados também pelos justos, bons e belos.


Filme: E Amanhã… O Mundo Todo
Direção: Julia von Heinz
Ano: 2020
Gênero: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.