A história selvagem e fascinante da Netflix que prova que a realidade é mais estranha do que a ficção

A história selvagem e fascinante da Netflix que prova que a realidade é mais estranha do que a ficção

A vida dá provas reiteradas de que pode mesmo tecer histórias muito menos verossímeis que a ficção, dado de que o cinema, espertamente, se aproveita. No caso de “Bad Vegan: De Rainha do Veganismo a Foragida”, a trama farsesca por trás do enredo é de um absurdo tão caudaloso que condensar tudo num filme de duas horas poderia soar como se o diretor Chris Smith quisesse apenas comercializar sua produção, torná-la palatável ao mercado e nada mais, quando era necessário, no mínimo, dedicação às muitas particularidades do mote central com que constrói a narrativa, sucessão de eventos que se repetem com uma frequência difícil de tolerar, mas que nem por isso deixam de causar espécie.

Lançado na esteira de “O Golpista do Tinder”, dirigido por Felicity Morris, e “Inventando Anna”, criação de Shonda Rhimes, os três com estreia em 2022, o trabalho de Smith também se desdobra em torno de um vigarista, seus métodos, as pessoas que tem de engambelar a fim de alcançar seus objetivos criminosos — o que, espantosamente, sempre acontece — e de que maneira tudo acaba, não por coincidência da mesma forma. A diferença dessa vez é que o diretor acaba atribuindo à vítima o duplo papel de algoz, mesmo que o tenha sido involuntariamente. Num piscar de olhos, Sarma Melngailis deixa de ser apenas a bem-sucedida proprietária de um dos restaurantes mais célebres de Nova York para virar figurinha carimbada nas páginas das colunas de polícia. E o percurso entre uma e outra condição parece longo, as razões, evasivas, mas tendo-se a paciência com que Smith elabora a questão (e muito, mas muito senso de empatia), pode-se atingir o xis do problema.

A subida de Melngailis rumo ao topo do cenário gastronômico da Big Apple começou junto com os anos 2000, momento em que a então economista formada pela UPenn Wharton, na Pensilvânia, uma das instituições de ensino superior mais tradicionais dos Estados Unidos e muito procurada graças ao rigor acadêmico com que prepara seus alunos. Talvez toda essa pompa fosse demais para alguém que sequer tinha certeza de que queria mesmo viver cercada dos números, não das panelas — enquanto seus colegas de trabalho assinavam a “The Economist” e o “Wall Street Journal”, ela se deliciava com a leitura quase proibida de livros de receitas. Corajosa, Melngailis se decide mesmo pela paixão pela comida, conquista seu diploma no French Culinary Institute, especializado na requintada cozinha francesa, em 1999, e abre um pequeno restaurante. Os negócios não vão bem; nessa mesma época, ela conhece Matthew Kenney, um chef de idade próxima a sua, mas muito mais experiente. Kenney trabalhava no Pure Food and Wine, famoso por conferir popularidade e sofisticação à gastronomia vegana e crudívora, em que além da completa ausência de carne e qualquer outro alimento de procedência animal, tudo é servido cru. A amizade com Kenney se transforma em namoro, e ele a apresenta a seu patrão, o restauranteur Jeffrey Chodorow, com quem também passa a trabalhar. Chodorow admira o empenho e, sobretudo, o talento de Melngailis, o que parece ser um incômodo para o namorado. O romance desanda, mas a carreira da nova funcionária deslancha. Quando Kenney, já tomado pelo veneno do ciúme, encurrala Chodorow, o empresário fica com Melngailis, que aproveita para adquirir as ações que o agora ex-companheiro tinha no Pure. Não demora, ela se sente segura o bastante para tocar o negócio sozinha, faz uma proposta a Chodorow, que lhe repassa sua parte no restaurante, a ser paga com a receita do empreendimento, e o resto é história. Chodorow decerto tomara as duas piores decisões de sua vida.

No princípio, as coisas vão como ouro sobre azul. Celebridades e personalidades como Alec Baldwin e Bill Clinton se desmanchariam em elogios à comida do Pure Food and Wine, e sua nova chef é alçada à categoria de estrela. O restaurante é ranqueado como um dos melhores da cidade, segundo a lista da revista “New York”, e é selecionado cinco vezes pela “Forbes”. O serviço se diversifica e a Pure Food and Wine se torna uma genuína holding, com a inclusão do One Lucky Duck, focado em sobremesas e sucos, e da Takeaway, para viagem. As coisas saem melhor que a encomenda, até Shane Fox aparecer.

Viciado em jogo, mitômano compulsivo e sedutor refinado, Fox era na verdade Anthony Strangis, e valendo-se de sua rara habilidade em técnicas de gaslighting — a velha manipulação —, esse personagem sinistro vira uma sombra na vida de Melngailis. Os dois começam um relacionamento que até parecia um namoro meio casto demais, sem demonstrações de carinho públicas, só as mensagens açucaradas de Strangis para a chef (e sempre nessa configuração, dele para ela) e promessas que fariam corar qualquer roteirista de série de ficção científica. Fazendo com que Melngailis acreditasse que pertencia a uma organização de indivíduos superiores aos seres humanos, Strangis “iludira” a namorada com alusões a um mundo de glória e poder infinitos, onde passariam a eternidade sem que nunca lhes faltasse dinheiro, muito dinheiro, carros importados, mansões de 12 milhões de dólares na 15th Street e uma existência que nunca teria fim, para os três, Melngailis, Strangis e Leon, o american pit bull terrier dela. Não ria. A doidice de Strangis, prontamente encampada parece mesmo saída de algum filme de ficção científica ruim, mas Smith sabe como apresentar a pletora de elementos que compõem a história de modo trazer a luz possíveis explicações. Sarma Melngailis é uma mulher frágil, sentimental, carente, vulnerável, mas é também uma pessoa com a autoestima patologicamente baixa, que quando encontra um candidato a salvador, se entrega. Alguma coisa em Anthony Strangis a fez enxergar nele a oportunidade de ser feliz num relacionamento mais voltado à espiritualidade que aos apetites da carne, o passional Matthew Kenney jamais lhe poderia proporcionar. Quiçá uma histérica, uma psicopata como o criminoso Strangis, ela poderia ter a aversão ao sexo de que falara Polanski naquele grande filme com Catherine Deneuve. Poderia pensar que isso fosse amor. E o amor é o ridículo da vida, como sugeriu Pessoa.

As dezenas de entrevistas, com ex-funcionários e parentes de Melngailis, acabam por depor contra ela e favorecer seu algoz — ou cúmplice. Existe gente disposta a assumir uma dívida de mais de seis milhões de dólares e amargar algum tempo na cadeia em nome do que chama de amor. Existe gente para tudo.


Documentário: Bad Vegan: De Rainha do Veganismo a Foragida
Direção: Chris Smith
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.