Suspense premiado da Netflix vai deixá-lo em transe até o último segundo Divulgação / Warner Bros

Suspense premiado da Netflix vai deixá-lo em transe até o último segundo

Por constituir um universo muito distante da maioria esmagadora dos simples mortais, a política e seus caminhos — e mais precisamente seus descaminhos — acaba se tornando alvo do escrutínio de certos diretores. Por mais perdido que um episódio possa parecer na memória comum de um país, a mais ligeira espanadela na poeira do tempo já é o bastante para que se reacendam discussões que se consideravam superadas, mas que ainda guardam relevância, justamente por encerrarem pontos obscuros, que merecem e podem vir à luz. E se reunirem em seu bojo corrupção, deslocamentos internacionais, o ubíquo desvio de dinheiro público, tudo adornado pelo charme inegável da espionagem profissional, tanto melhor.

Talvez a história de “O Homem das Mil Caras” (2016) demore um pouco a engrenar. Contudo, uma vez girada a chave, é impossível não embarcar na trama de Francisco Paesa, agente secreto que investigou a má conduta do ex-chefe da Polícia Nacional espanhola em meados dos anos 1990. A narrativa, baseada no roteiro detalhista do diretor Alberto Rodríguez e Rafael Cobos Lopez, muito bem orientado por “Paesa: O Espião de Mil Faces”, livro-reportagem do jornalista investigativo Manuel Cerdan, é conduzida por um personagem secundário, que cresce à medida que os eventos se sucedem e se atropelam uns aos outros. Por si só uma aposta no poder oculto do enredo.

Interpretado por José Coronado, Jesus Camões apresenta os fatos tomando uma certa distância, providencial, a fim de que cada elemento do roteiro permaneça no seu lugar, até que Rodríguez se decida a voltar os holofotes nessa ou naquela direção. Até então Paesa segue incógnito, mas o protagonista, vivido com enérgico interesse por Eduard Fernandez, vai deixando as sombras e ocupando o proscênio. A natureza delinquente do personagem, de banqueiro metido em falcatruas governamentais a espião, com passagem também pelo tráfico de armas, contrasta com seu temperamento impassível, até que o cerco se fecha e ele é obrigado a se exilar em Paris. Paesa só regressa a Madri em 1995, como um pária: sem perspectivas de recolocação profissional, tem de se desdobrar para não retomar a velha vida de crimes, monitorado eletronicamente pelas autoridades espanholas.

Nesse meio tempo, o personagem de Fernández revela facetas desconhecidas, que lhe conferem um pouco mais de humanidade. A entrada em cena de Luis Roldan, o ex-comissário da Polícia Nacional interpretado por Carlos Santos Rubio, é o gatilho que o diretor dispara a fim de desvendar as intenções do espião. Roldán dispõe de 12 milhões de pesetas roubadas de fundos públicos que intenta proteger do faro das autoridades, plano que necessita de um cúmplice para dar certo. Essa é a oportunidade que Paesa encontra para dar forma ao plano de vingança contra os poderosos que conhecera e que de algum modo lhe negaram a ascensão que esperava. Rodríguez é capaz de manter seu filme num suspense contínuo, sem prejuízo do andamento de subtramas menores, como as conversas sussurradas de homens de meia-idade envergando ternos bem cortados arquitetando novas projetos para velhos esquemas.

A história política contemporânea da Espanha é tomada como um pano de fundo diáfano, numa abordagem entre farsesca e satírica, momento em que Rodríguez preocupa-se em expor a escalada de movimentos separatistas como o ETA, que visa à autonomia do País Basco, no extremo norte espanhol, na fronteira com a França. Fundado em 31 de julho de 1959 e declarado oficialmente extinto em 2 de maio de 2008, o ETA foi perseguido sem trégua pela ditadura de Francisco Franco (1892-1975), caudilho de extrema-direita cujas viúvas ainda hoje geram focos de caos social. O Vox, partido de ultradireita, foi admitido a fazer parte do governo de uma região nas adjacências de Madri, fato inédito no país, o que, por óbvio, desagrada e estarrece grande parte da população e o restante do mundo civilizado. 

A fotografia de Alex Catalan, com o predomínio de tons esmaecidos, faculta a quem assiste se aprofundar no clima de falta de transparência que traga os personagens. O montador José M. G. Moyano absorve o espírito soturno do trabalho de Rodríguez e opta por uma cadência propositalmente mais pesada, ao passo que a trilha de Julio de la Rosa deixa o filme surpreendentemente ágil em certas passagens. Repetindo o esmero visto em “Marshland” (2014), Alberto Rodríguez firma-se como um dos cineastas mais intelectualmente rigorosos da Espanha hoje, proporcionando ao público leigo um olhar em teleobjetiva de seu país ao longo deste século.


Filme: O Homem das Mil Caras
Direção: Alberto Rodríguez
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Thriller/Biografia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.