Implacavelmente trágico, filme da Netflix vai perturbá-lo como se 136 minutos fosse o resto de sua vida

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Angelina Jolie é infinitamente menos conhecida como diretora do que em sua carreira de atriz. Contudo, “First They Killed My Father” (2017) é o quinto longa-metragem que Jolie dirige, com o mesmo afinco com que se dedica quando diante das câmeras, aliás. O roteiro, construído com atenção redobrada em detalhes que decerto passariam despercebidos para muita gente, toma por base o livro da autora cambojana Loung Ung, sobrevivente da matança perpetrada pelo Khmer Vermelho, o partido comunista do Camboja, no sudeste do país, entre 1975 e 1979. Coautora do roteiro com Jolie, Ung narra em sua autobiografia a tragédia de seu povo quando da ascensão do ditador Pol Pot (1925-1998), cujos desmandos exigiram que uma massa de cambojanos deixasse suas casas e fosse para o centro do país. Em três dias, quase 25% da população acabou exterminados. O enredo se desenrola sob o ponto de vista de Loung, então com cinco anos quando da escalada da tirania de Pol Pot.

A hecatombe que se abateu sobre o país poderia adquirir uma natureza fantasiosa, romântica, dada a pouca idade da protagonista, mas o apuro com que a pesquisa histórica foi conduzida elimina o risco. A relação de Angelina Jolie com o país, todavia, remonta diretamente a sua memória afetiva: foi lá que ela gravou “Lara Croft: Tomb Raider” (2001) e um de seus filhos adotivos, o primogênito Maddox, é cambojano (no ano anterior, Jolie já havia abiscoitado o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pela performance irretocável de uma potencial suicida em “Garota, Interrompida”, de James Mangold). Aliás, deve ter contado para Jolie o fato da narrativa ser o relato de uma filha privada da convivência com o pai: ela mesma, por outras razoes, teve conflitos familiares algo relevantes e bem parecidos. Ao longo das duas horas e dezesseis minutos de duração do filme, Jolie esmiúça a permanência da família Ung nas chamadas unidades de reeducação — um eufemismo para campo de trabalhos forçados —, onde a terra, generosa, dava frutos de que eles não comiam, o sol era radiante, mas a escuridão daquelas almas lhe empanava o brilho e os semblantes sem vida dos cativos refletem um súbito esmaecimento das cores, que a fotografia de Anthony Dod Mantle faz questão de frisar. Ali, toda beleza era só uma das faces do desespero.

Para compreender o quanto a emoção conta no drama de Jolie basta atentar para a performance de Sareum Srey Moch, a atriz que interpreta a pequena Loung Ung. A protagonista tinha cinco anos quando o Khmer Vermelho conquistou a capital Phnom Penh e sete quando, enfim, conseguiu escapar do domínio comunista. As lembranças de Ung estão todas eivadas por episódios de ultraje, fome, violência e morte. Ela e todas as outras crianças tornaram-se especialistas em atividades que não deveriam interessar a ninguém, como plantar minas terrestres, manejar um fuzil AK-47 e traspassar na ponta da lança o peito dos soldados vietnamitas, rivais do exército cambojano. Logo no início do filme, a narrativa é direcionada a uma digressão sobre como o ataque a bomba das tropas americanas, na esteira do desfecho da Guerra do Vietnã (1955-1975), contribuiu para que se formasse um vácuo de poder logo preenchido por pessoas sem legitimidade para tanto. A documentação histórica acerca do evento é vasta e reúne incontáveis cenas dos famosos cinejornais, muito populares à época, e clipes que reportavam bombardeiros reduzindo florestas a um emaranhado de fogo, e o desinteresse algo desculpável das tropas ianques pelo Camboja, um território que não conheciam, mas pelo qual não se sentiam especialmente tocados, dada a derrota dos Estados Unidos no confronto com os vietcongues. Mesmo a guerra se dando no país vizinho, foram mortos entre 240 mil e 300 mil cidadãos cambojanos, e foi precisamente esse argumento de que o então presidente Richard Nixon (1913-1994) se valeu para justificar a ausência de efetivos americanos lá: cambojanos e vietnamitas atacavam-se mutuamente, e os Estados Unidos já não tinham reservas financeiras nem moral bélico para se agarrar a numa outra cauda de cometa no Sudeste Asiático. Nixon, no entanto, já havia sido flagrado admitindo publicamente a necessidade dos americanos permanecerem combatendo secretamente  na região e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, chegou a mencionar uma “solução final” para os conflitos, como Hitler dissera sobre o incômodo representado pelos judeus na Alemanha, plano levado a termo por Adolf Eichmann (1906-1962), um de seus assessores mais devotados, e que redundou no Holocausto, o extermínio em massa de mais de onze milhões de judeus.

Loung Ung levava uma tranquila e burguesa em Phnom Penh, com o pai, vivido por Phoeung Kompheak, policial militar, a mãe, de Sveng Socheata, dona de casa, e os cinco irmãos num sobrado de assoalho de madeira corrida, móveis modernos, televisão. Até o Khmer Vermelho, um fragmento do Exército Popular do Vietnã do Norte, liderado pelo futuro ditador Pol Pot, invadir a cidade, esmagar os antigos simpatizantes do frágil governo oficial do país e começar o expurgo que não ficaria devendo nada à barbárie nazista e também levaria milhões à morte, seja pelo esgotamento físico nas tais unidades de reeducação, seja pela falta de alimentação adequada — ou, claro, pela violência na sua forma mais imediata. A instalação dos Ung na colônia de prisioneiros políticos converte “First They Killed My Father” num drama de família, em que a guerra perde importância frente à necessidade de sobreviver e preservar o mínimo de sanidade mental. De quando em quando, Jolie abre margem para flashbacks que permitem ao espectador alguma divagação quanto à felicidade ainda que tardia do clã, se estendendo sobre as lembranças felizes e espantosamente vivazes de uma garotinha. A desdita que se abate sobre a família, entregue logo no título, reduz qualquer possibilidade de volta ao momento que antecede o ponto de ruptura; doravante, só o que interessa para Loung e os seus é se concentrar no futuro (se futuro houver), encarar a vida o mais pragmaticamente possível, saborear os gordos besouros assados no fogo como se fossem castanhas doces e dar adeus às idílicas ilusões.

Angelina Jolie não poupou esforços nem milhões de dólares a fim de contar a história cruel da passagem dos comunistas pelo governo do Camboja — malgrado tenha preferido omitir as animosidades com os “irmãos” vietnamitas, deslize minimizado pela lembrança dos Estados Unidos como copartícipes do genocídio empreendido contra o povo cambojano, e louve-se sua coragem intelectual ao fazê-lo —, o que lhe custou uma boa dose de criatividade quanto a não permitir que seu trabalho resultasse num pastiche intragável de “Apocalypse Now” (1979), dirigido por Francis Ford Coppola, misturado a “Sete Anos no Tibete” (1997), de Jean-Jacques Annaud. Repetindo o sucesso, a qualidade técnica, a relevância do mote e a poesia do antecessor “Invencível” (2014), com “First They Killed My Father” pode-se inferir que Jolie está no caminho certo.


Filme: First They Killed My Father
Direção: Angelina Jolie
Ano: 2017
Gênero: Guerra/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.