Estilo é estilo. Há quem se faça reconhecido por meio da forma como registra suas impressões sobre o mundo e suas barbaridades, amenizando-as ou, pelo contrário, destacando-lhes a natureza fora do comum, seja por absurda, cruel ou só estranha mesmo, ao passo que também existem aqueles que, mais ainda, conseguem ser invejados por isso. Para integrar a segunda categoria, é necessário, por óbvio, ter passado pela primeira, e, por seu turno, para se vir a ser admitido como artista e dono de um estilo próprio, levam-se anos, décadas, séculos muitas vezes. Bem-aventurados os que têm estilo, pois deles será o reino da glória.
Existe uma contradição fundamental entre quem diz perseguir um estilo ou estar à procura de um. A maneira verdadeiramente única de se expressar — e aqui nos referimos à expressão artística, que se tenha claro — não necessita nada além da vontade, às vezes nem isso. No caso do cinema, que é o que nos interessa, há filmes que parecem nunca terem sido feitos: eles pairavam no ar, prontinhos, à espera de alguém que os submetesse à exibição pública e massiva. Resta evidente que são a minoria, mas também é nítido que são justo essas tramas as que transformam a sociedade que, de um modo ou de outro, acabou por fomentá-las. Poucos cineastas na história têm a chance de bater no peito e dizer para quem quiser ouvir que são dotados de estilo. Jim Jarmusch é um deles.
É difícil apontar um filme exatamente ruim de Jarmusch — filmes impopulares ou cuja audiência fica muito aquém das expectativas, diretamente proporcionais ao coeficiente de polêmica que geram é outra coisa. “Paterson” (2016) talvez seja o exemplo mais próximo de um trabalho jarmuschiano que arrebatou uma Palma de Ouro, mas foi incapaz de roubar corações e capturar mentes, mesmo os de espectadores que se dizem admiradores e entusiastas de sua obra. A história de um motorista de ônibus que se atreve a escrever poesia, ainda que nas horas vagas, só para manter a sanidade diante de um sistema que se apropria de bem mais que somente de sua força de trabalho é atrevimento demais para um simples fazedor de filmes, quem sabe um rematado absurdo. É possível, até porque é a partir desses atentados ao senso comum que o diretor constrói a realidade que julga digna de ser real — e termina por sê-lo, ao menos durante o tempo em que seu filme permanece na tela. Só faltava esse espírito de mudança deixar o corpo do filme e encarnar nas cabeças dos poderosos, o que cineastas só conseguem ser por duas horas, às nem isso.
Definitivamente, “Os Mortos não Morrem” (2019) não faria parte de uma coletânea do tipo “O melhor de Jim Jarmusch, mas esse terror cômico (ou seria só comédia mesmo?) não passa sem se fazer notar, aliás como quase tudo do diretor, que parece ter sido acometido de uma súbita carência e resolveu falar do que sempre falara numa linguagem que todo mundo entende — outros gênios antes dele ja o tinham feito, casos de John Carpenter em “Eles Vivem” (1988) e mais especificamente George Romero (1940-2017) em “Despertar dos Mortos” (1978). No que se refere à incursão de Jarmusch no gênero, zumbis se apoderam da fictícia Centerville, cidadezinha de 738 habitantes no interior de Nova York (pelo menos foi lá que o filme foi rodado), e não demoram a fazer das suas, leia-se eviscerar seus moradores e assim disseminar o pânico. A clássica cena dos mortos-vivos tornando à Terra também tem vez, sem nenhum efeito mais elaborado, o que acaba sendo o efeito em si, numa estética trash saborosamente mambembe, à do Zé do Caixão. Como frisa Bobby Wiggins, o balconista da loja de conveniência do único posto de combustíveis de Centerville vivido por Caleb Landry Jones, esses renascidos do inferno só voltam para o caldeirão de Lúcifer se decapitadas. Todos os personagens em algum momento passam pela loja, mas ainda que não o fizessem, parece que a recomendação teria se espalhado de qualquer maneira, tamanha a unidade do elenco. O chefe de polícia Cliff Robertson, interpretado por Bill Murray, orienta seus subordinados, os oficiais Ronnie Petersen, papel de Adam Driver, e Minerva Morrison, a Mindy, de Chloe Sevigny, a serem um pouco mais cautelosos e preservarem o sangue frio a todo custo. Uma ordem difícil de se seguir, sobretudo para Mindy, que acaba baixando a guarda e indo para o lado sombrio da força. Enquanto isso, Bob, o eremita radicado na reserva florestal da cidade encarnado por Tom Waits continua vivendo de cogumelos e esquilos — e agora, ao que tudo indica, dos franguinhos da fazenda de Frank Miller, personagem de Steve Buscemi — sem despertar a comiseração de ninguém. Não por acaso, é pela figura de Bob, que no “Hamlet” de Shakespeare seria uma das três feiticeiras, prenunciando o desastre iminente e locupletando-se por meio dele, que o público toma pé do caos que passa a reinar em Centerville. Alvo de uma maldição qualquer, os moradores do vilarejo talvez sejam menos negligentes com questões que pautam todo o mundo civilizado ao redor, como o combate ao racismo, expressamente manifestado por Miller no boné que pede que se faça a América branca de novo e em comentários como o que desfaz do café que lhe é servido no balcão da lanchonete local por ser preto demais para o seu gosto — na presença de Hank Thompson, de Danny Glover. Tudo ao som da onipresente “The Dead Don’t Die”, de Sturgill Simpson, que como esclarece Ronnie numa brincadeirinha metalinguística bastante dispensável, toca sem parar porque é a música-tema de “Os Mortos não Morrem”.
Pleno de surpresas, da participação de Tilda Swinton, perfeita como a anti-heroína (estrangeira) Zelda Winston, a dona da funerária que se vale de sua aptidão com armas brancas para neutralizar os zumbis, às pontas afetivas de Selena Gomez, como uma das vítimas dos monstros, e Iggy Pop, um dos soldados desse exército dos além-túmulo, “Os Mortos não Morrem” chega a ser fofo. Afinal, o que são zumbis se não mortos que se apegam à vida como crianças a uma roupa que já não lhes serve mais?
Filmes: Os Mortos não Morrem
Direção: Jim Jarmusch
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Terror
Nota: 9/10