Filme alucinante da Netflix é um dos mais vistos da história do cinema Divulgação / Netflix

Filme alucinante da Netflix é um dos mais vistos da história do cinema

“Resgate” (2020) tem tudo o que uma boa história de super-heróis poderia querer: um bom conflito, personagens com papéis muito bem definidos na narrativa e, claro, o protagonista, nem super-herói e nem mesmo herói, mas um clássico anti-herói, que marca presença desde o começo. Esse começo, nada brilhante para o personagem central do filme de Sam Hargrove, mostra Chris Hemsworth estropiado, tentando já não responder à investida de seus agressores, mas apenas se manter vivo. Mas a trajetória de Tyler Rake fora até bastante razoável ao longo do enredo. O que poderia ter saído errado?

O roteiro adaptado de Joe Russo, codiretor com o irmão, Anthony, de “Vingadores: Ultimato” (2019), parece ter a pretensão de repensar a função dos candidatos a salvador do mundo nas tramas contadas pelo cinema. Rake não é nada além de um mercenário, muito bem treinado para agir em situações de alto risco, imune a qualquer possível interferência externa — o que quer dizer que tem demônios interiores capazes de consumi-lo de um só golpe —, dotado de raro senso de oportunidade e com problemas severos quanto a administrar seu gosto por bebida e outras drogas, legais e ilegais. Acostumado a tomar parte em carnificinas de maior ou menor proporção ao redor do globo, afinal este é seu ofício, aqui o protagonista vivido por Hemsworth continua a se destacar entre cabeças partidas, ossos esmigalhados e a chuva de balas que persegue tipos como ele, mas como grandes ganhos implicam dores ainda maiores, Rake vai ter de se superar se quiser botar a mão na bolada que lhe prometeram e conservar sua fama de mau.

A operação para a qual está sendo requisitado é o salvamento de Ovi Mahajan Jr., o filho adolescente de um gângster de Mumbai vivido por Rudhraksh Jaiswal. O pai do garoto, Ovi Mahajan, interpretado por Pankaj Tripathi, encontra-se preso, e por isso tão vulnerável quanto o filho, sequestrado por Amir, de Priyanshu Painyuli, seu maior inimigo figadal. Não obstante ser dono de uma fortuna, Mahajan, chefão de um dos cartéis de drogas da Ásia, Mahajan não pode pagar o resgate porque seu dinheiro está apreendido. Mesmo assim, o submundo, sempre demonstrando uma fraternidade incomum entre cidadãos de bem, se junta e paga pelos serviços de Rake, contratado por Nik Khan, a gerente geral dos negócios do gângster, papel de Golshifteh Farahani. Sempre encalacrado, cheio das dívidas que seu estilo desregrado o leva a contrair — grande parte delas relacionadas ao ramo do novo patrão —, o guerrilheiro de aluguel sabe que essa missão tem componentes ainda mais pronunciados para ser malsucedida, porém vai para o tudo ou nada mesmo assim.

Valendo-se de flashbacks dispersos, exibidos no decorrer da primeira metade do filme, Hargrove faz de seu protagonista uma figura instável, quiçá meio duvidosa, e esse sua indefinição é o que o faz um pouco menos distante e previsível do tipo algo truculento e sempre imbatível das produções congêneres. Rake também se sobrepõe aos demais mocinhos vilanescos da história do cinema por seu instinto paternal mal disfarçado, mas que vem à tona com toda a força no momento em que o resgate começa a dar indícios de que não vai sair exatamente como o planejado e ele tem de lançar mão de estratégias alternativas a fim de levar a missão a cabo, recorrentemente assaltado pela ideia de que sua escolha para a tarefa pode não passar de um plano para sabotá-lo. Não é fácil ser um justiceiro independente.

Russo dá vazão a um roteiro desenvolto, embora o excesso de personagens reste um desafio cuja resolução degringole em saídas um tanto fáceis e pouco lógicas, enquanto todos esses arcos permanecem abertos. Talvez o elemento que melhor traduza esse atabalhoamento crescente do filme seja a aparição de Gaspar. O personagem de David Harbour, companheiro de Rake na empreitada para libertar Mahajan Jr., deixa escapar a dada altura da história que o protagonista de Hemsworth lhe salvara a vida, e, por evidente, ele lhe é muito grato. Entretanto, martela no espectador o incômodo de jamais se saber em que circunstâncias isso se dera, ao passo que a trama caminha para múltiplas abordagens em torno de ações que se fecham em si mesmas, asfixiando o clímax, que se estende um pouco além da conta. E apesar do bom humor involuntário e algo rabugento de Rake, “Resgate” não dispõe de nenhum outro respiro, sequer esporádicos (e aguardados) joguinhos de sedução entre ele e Khan.

O sangue jorra ininterruptamente, um predicado do cinema macho raiz que nunca sai de moda e valoriza o trabalho de Hargrove e Russo, bem como a afinidade entre Rudhraksh Jaiswal e Chris Hemsworth, que ameniza possíveis elucubrações sobre um suposto discurso racista do filme, conduzido por um homem branco que, apesar de seus muitos defeitos, é o líder da missão benfazeja que livra um menino não-branco de criminosos mestiços. Para quem ignora ou finge ignorar essas entrelinhas, a carnificina em “Resgate” é servida ao ponto.


Filme: Resgate
Direção: Sam Hargrove
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10