O filme argentino que é um dos mais angustiantes e brutais do catálogo da Netflix Divulgação / Cooperativa Estrella Films

O filme argentino que é um dos mais angustiantes e brutais do catálogo da Netflix

A vontade de crescer, de prosperar, de mudar de vida pauta a trajetória do homem desde sempre. O capitalismo moderno, uma invenção de pouco mais de duzentos anos, na verdade, parece ter dormitado na cabeça de alguma personalidade da economia ou das ciências sociais por um período maior que o recomendável, mas uma vez aflorado, tomou conta de todo o cenário ao seu redor. Baseado na defesa da economia de mercado e da livre concorrência, o sistema capitalista de produção teve na figura do filósofo e economista escocês Adam Smith (1723-1790), homem dos Setecentos, o feérico Século das Luzes, época de revoluções lapidares nas artes, na ciência e na economia, um grande entusiasta, quiçá o maior. Smith provou-se um visionário, alguém que enxergava o mundo e o compreendia muito além do que a sociedade do tempo em que viveu poderia permitir. A humanidade conheceu depressa do que era capaz o gênio de Smith, o artífice de uma das teorias mais completas acerca do liberalismo econômico, doutrina que, por seu turno, prestou-se a alicerce para a fundamentação do capitalismo moderno. Entre outros postulados, o economista pregava que o Estado não interferisse na condução da economia, e o pensamento liberal reza ainda que todos somos dotados de autonomia para escolher adquirir determinada mercadoria ou solicitar dado serviço da empresa que quisermos e, por óbvio, aquelas que proporcionam ao consumidor um produto ou atividade laboral mais bem-acabada, sem que o bolso reste comprometido, leva a melhor. Acontece essas empresas, grandes ou de fundo de quintal, logo descobriram jeitos de burlar a esperteza da freguesia e não deixar de lucrar nunca, mesmo não cumprindo sua parte no tácito contrato social de todo dia que diz que o comerciante deve se esmerar por tornar disponível a quem compra produtos em perfeito estado, ao preço mais razoável, incluindo-se já o lucro, valendo-se do arcaico expediente da fraude.

Se “El Patrón: Radiografía de un Crimen” não for capaz de nos fazer repensar nossa relação com o consumo em sua configuração mais básica, nada mais o será. O filme do diretor argentino Sebastián Schindel, lançado em 2013 e livremente inspirado no livro homônimo do escritor e ativista de ocasião Elias Neuman, publicado em 1988, toca em chagas abertas da Argentina ainda hoje, valendo-se do roteiro bem amarrado de Nicolás Batlle, Javier Olivera e do próprio Schindel. O regionalismo mais atrasado, diferenças de classe, corrupção de agentes públicos, racismo e um ordenamento jurídico tão inflexível que, na prática, estimula o preconceito e aumenta o fosso entre ricos e miseráveis são variáveis de uma mesma equação, que longe de resolver o problema, ao menos serve para sugerir providências.

Trabalhadores como Hermógenes Saldívar, uma composição muito fundada na caracterização física de Joaquín Furriel, parecem destinados a ter de tentar desvencilhar-se do arbítrio patronal incansavelmente. Antes trabalhador rural em Santiago del Estero, no norte da Argentina, o personagem de Furriel parte rumo a Buenos Aires à procura de melhores condições de vida para si e para sua esposa, Gladys, de Mónica Lairana, também uma interpretação que prima pela transformação corporal. Meio corcunda, com a perna direita inutilizada graças à fúria de um cavalo na infância, analfabeto e completamente desacreditado, Hermógenes acaba aceitando a proposta de trabalho de Latuada, de Luis Ziembrowski, que lhe oferece emprego num de seus açougues, depois que demite o “peruano imundo” que administrava a loja por acreditar que este o roubava. Perigosamente ingênuo, Hermógenes — imediatamente rebatizado como Santiago, em referência a sua terra natal, uma forma de desidentificá-lo e, por que não?, desumanizá-lo —, acredita que tirou a sorte grande, ao conseguir ocupação tão fácil e ainda poder se livrar do aluguel do quarto de pensão em que mora com Gladys e poder se mudar para os fundos do açougue, um espaço claustrofóbico, úmido e imundo, mas, que, segundo Latuada, ficaria perfeito depois de uma faxina. Santiago e a mulher, que vai trabalhar na casa de Latuada, passam a dividir o cubículo, e à medida os dias avançam e a história toma corpo, o protagonista se dá conta de que o patrão não é assim tão bom quanto ele imaginava. Periodicamente, o açougue recebe cargas de carne adulterada, rejeitadas pela Vigilância Sanitária e revendidas como ainda próprias para consumo mediante expedientes que Latuada e Armando, o funcionário mais antigo vivido por German de Silva, lhe detalham passo a passo.

Essa virada, momento da narrativa em que Furriel cede lugar a Ziembrowski na condução da história, expõe alguns dos argumentos que se escondiam ao longo de “El Patrón: Radiografía de un Crimen”. A avareza criminosa de Latuada — que aproveita até o último naco de carne, mesmo quando, já apodrecida, seja necessário misturá-la ao lote fresco, carregá-la de temperos ou, o absurdo completo, polvilhá-la com sulfito ou embebê-la num tonel de água sanitária — abre caminho para outras posturas que denotam a perversão de seu caráter. Santiago experimenta a ira despropositada do superior sem prévio aviso, ouvindo dele impropérios como “negro ignorante” a todo momento. Num anexo ao salão, na calada da noite, o empregado, numa rotina mais assemelhada à de um escravo, continua esfregando até os ossos as postas de carne, a fim de minimizar o fedor que esconde a deterioração. Algum tempo depois de ter a companheira expulsa por Latuada, por Gladys supostamente influenciar mal a esposa do patrão, Santiago, sempre ofendido, sempre acuado, reage.

A maior parte da história se desenrola em flashbacks, em que Marcelo Di Giovanni, o advogado do açougueiro, aparece para esclarecer que destino pode ter seu cliente depois do entrevero com Latuada. É quando o espectador fica sabendo que Santiago nunca foi legalmente contratado, devia ao patrão uma fortuna em meses do aluguel do quarto atrás da loja e, ao que tudo apontava, nunca poria a mão nas chaves do apartamento que este lhe prometera, e pelo qual pagava uma prestação, descontada de sua féria. O derradeiro ato do filme se liga ao enredo típico de filmes de tribunal. Depois de uma batalha jurídica exaustiva, Di Giovanni, usando de seu conhecimento das leis argentinas e de um grande poder de persuasão, consegue converter a prisão perpétua de Santiago para a libertação imediata do açougueiro. Um milagre do cinema bem ao gosto de Hollywood.

Levantando questões nunca esgotadas, a exemplo da subjugação patronal, uma praga jurássica do capitalismo para a qual o único remédio é mesmo a lei — e depois de muito vaivém de processos e audiências, eventos sempre desgastantes —, o longa de Sebastián Schindel apresenta uma defesa apaixonada da liberdade e da dignidade, principalmente dos mais desvalidos. A sequência final, quando a jornada de Santiago na cidade grande tem um desfecho melancólico, deixa no ar que seu espírito já frágil se quebrara de vez, irremediavelmente. E que a vida, de uma forma ou de outra, tem de continuar.


Filme: El Patrón: Radiografía de un Crimen
Direção: Sebastián Schindel
Ano: 2013
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 8/10