Suspense filosófico da Netflix vai deixar sua cabeça girando Mary Cybulski / Netflix

Suspense filosófico da Netflix vai deixar sua cabeça girando

Se há uma qualidade extremamente positiva no cinema é sua versatilidade. Todos passamos por momentos em que se deseja um pouco de sossego, para o espírito e para o corpo, logo também existem os filmes que refletem essa necessidade. Da mesma forma, há os filmes que não têm o menor pudor quanto a deixar o público completamente perdido, tão sem fôlego como se tivesse corrido uma maratona debaixo de neve intensa, um cansaço que se espraia em proporção equivalente para a alma. É o caso de “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020).

Exaurindo o espectador, uma de suas grandes especialidades como realizador de cinema, aqui Charlie Kaufman vai ainda mais longe. Já o fizera nos roteiros de “Quero Ser John Malkovich” (1999), dirigido por Spike Jonze, “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), levado à tela por Michel Gondry, e “Synecdoche, New York” (2008), quando, afinal, merecidamente, também lhe coube dar a configuração fílmica que julgava adequada a uma história que não saiu diretamente de sua mente brilhante, mas cuja adaptação tem o condão de valorizar o caráter autoral, que por evidente privilegia a narrativa literária em sua essência, valendo-se precisamente do texto do célebre romance  de Iain Reid para explorar a condição humana em meandros raramente apreciados e, pior, menosprezados por cineastas e mesmo literatos de pena caudalosa, mas cuja profundidade é mera propaganda.

Logo no começo de “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, a voz em off da soberba Jessie Buckley — indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “A Filha Perdida” (2021), de Maggie Gyllenhaal — se estende sobre as palavras de Reid acerca do porquê quer acabar com tudo, sem saber de que tudo está falando, nem como isso se daria. Só o que se vai conhecer a seu respeito, pelo menos de imediato, é que Lucy, sua personagem, é uma mulher simples, estudante de física, mas com uma vultosa inclinação poética. Autora de poemas que problematizam questões como amor, desejo, intelecto, todas de alguma forma analisadas à luz da efemeridade da vida, a personagem encarnada por Buckley aceita viajar para conhecer a fazenda dos pais do namorado, numa cidadezinha afastada, ao longo da tarde que some sem cerimônia durante uma nevasca que se prolonga por todos os 134 minutos de projeção. Lucy não sabe por que aceitara o convite, mas sabe muito bem que não deveria tê-lo feito, uma vez que, depois de seis ou sete semanas, já estava determinada a encerrar o relacionamento com Jake. A partir do momento em que entra no carro de Jake — um desempenho de Jesse Plemons à altura do enorme talento de sua parceria de cena, também nomeado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por “Ataque dos Cães” (2021), de Jane Campion —, a protagonista começa a repensar tudo o que vivera até então, tomada por um fluxo de pensamentos monomaníacos que incluem, sim, romper com o namorado, mas sugerem também mudanças ainda mais chocantes.

O deslocamento até a casa dos pais de Jake, uma participação vívida de David Thewlis e Toni Collette, é só o trampolim semântico de que Kaufman se lança, levando sua história consigo, a fim de desdobrar as intenções digressivas de Reid, coautor do roteiro. “Estou Pensando em Acabar com Tudo” é o registro de uma realidade que flerta descaradamente com o sonho, com o absurdo até, remetendo ao poder do pensamento onírico, capaz de encaminhar a audiência a iluminações reveladoras, já conhecido de todos por meio da vasta produção de David Lynch, realizador de “Eraserhead” (1977), Duna (1984) e “Cidade dos Sonhos” (2001), clássicos do gênero. A esperança, segundo Lucy diz em dado momento do longa, é que nos distingue dos outros animais: o homem não suporta o presente, sua vida, sua realidade, seu tempo, sua era, e, por isso criou a esperança, que o conecta ao mundo como queria que ele fosse, o mundo dos seus sonhos, que só existe para si mesmo. Essa linha direta entre alucinação e a concretude da vida, tão presente na sociedade do espetáculo, como enunciado pelo pensador francês Guy Debord (1931-1994), e que se alonga muito mais do que apenas sobre a constituição do homem como animal político, é o eixo do trabalho de Kaufman, que destaca a massa desconjuntada e amorfa que se empenha em fazer parte de um todo, malgrado saiba que nunca vai consegui-lo, completamente alijada que está das condições mais básicas que lhe permitam viver com dignidade. Portanto, só lhe resta sonhar.

Este parece ser o caso de Lucy, que se metamorfoseia em Yvonne, sua porção lírica, e do mesmo jeito que muda de nome, transforma outros aspectos de sua identidade, a exemplo de sua formação e ofício. Essa não é a única extravagância narrativa do diretor; na fazenda, na sequência a um jantar bastante indigesto, os personagens de Thewlis e Collette são mostrados algumas décadas mais velhos, ao passo que Lucy e Jake conservam-se como estão, ou seja, há alguma coisa transcorrendo em paralelo. Em outra frente, a personagem de Buckley não é nenhuma ignorante, mas sempre fica a reboque dos temas levantados por Jake. Ele menciona um ensaio escrito por David Foster Wallace (1962-2008), sobre a televisão e a hegemonia de indivíduos bonitos em todas as emissoras; ela nunca o leu, mas sabe que Wallace cometera suicídio. Seria esse acabar com tudo a que alude o título? Pode ser, já que mais adiante os dois deliberam sobre uma crítica de Pauline Kael (1919-2001) acerca de “Uma Mulher sob Influência” (1974), em que a protagonista Mabel Longhetti, vivida por Gena Rowlands, também tenta se matar no filme de John Cassavetes (1929-1989). Mas bater o martelo e dar o caso por encerrado sob esse ponto de vista se revela uma decisão assaz precipitada.

A força da metáfora da viagem de carro, em que Lucy e Jake se movem do presente para o passado por uma paisagem hostil, mas na verdade vão do nada a lugar nenhum recrudesce quando o personagem de Plemons para, primeiro na sorveteria e depois no colégio em que cursou o ensino médio, cenários que o fazem recordar sua infância — mas essas imagens dizem respeito apenas a ele. Como ele demora, Lucy salta do carro, começa a procurá-lo e se depara com a figura do zelador interpretado por Guy Boyd, que simboliza o que sua vida pode vir a ser ao lado de Jake. Tanto mais atormentada, porque gostou do homem, Lucy talvez opte por um caminho do qual decerto há de se arrepender.

Pleno de simbolismo, o desfecho do filme de Charlie Kaufman insinua que talvez o problemático casal de personagens centrais tenha conseguido ir além do que se deixa ver, atravessou as tempestades de neve e chegou ao inverno da vida em paz, consigo mesmo e com o mundo. Muito complexo, riquíssimo, “Estou Pensando em Acabar com Tudo” exige até a última gota de quem o assiste — e talvez apreciá-lo em casa, diante da televisão ou mesmo do celular o tolha de sua dimensão filosófica —, mas a recompensa vem a galope. Pode soar algo pretensioso alguém se meter a dar recomendações sobre fruir de uma experiência tão íntima, mas desligue-se ao apertar o play e deixe que o mundo das ideias e do sonho se sobreponham ao ramerrão do dia a dia e acabem com você. Ou com o que resta de você.


Filme: Estou Pensando em Acabar com Tudo
Direção: Charlie Kaufman
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.